O gnosticismo, uma das primeiras e mais significativas perversões do cristianismo nascente, emergiu como um movimento complexo e diversificado, cujas principais ideias podem ser delineadas a partir das fontes.
Origem e Caráter Essencial:
O gnosticismo não surgiu do nada, mas se desenvolveu a partir de raízes no judaísmo, evoluindo para uma estranha mescla de elementos judaicos, doutrinas cristãs e ideias pagãs especulativas. Já nos dias dos apóstolos, havia indicações de formas incipientes de gnosticismo, com mestres heréticos preocupados com especulações sobre anjos e espíritos, caracterizados por um dualismo falso que levava tanto ao ascetismo quanto à libertinagem, e que espiritualizavam a ressurreição.
No século II d.C., esses erros assumiram formas mais desenvolvidas e foram publicamente proclamados, encontrando notável divulgação em um período marcado por um sincretismo geral, um desassossego religioso e uma avidez por absorver e harmonizar diversas ideias religiosas. As religiões do Ocidente já não satisfaziam, e seitas orientais eram avidamente abraçadas, buscando conhecimento mais profundo, comunhão mística com Deus e segurança para a alma após a morte. O cristianismo, com sua reivindicação de ser a religião absoluta e universal, parecia prestar-se a essa tarefa, e o gnosticismo tentou, equivocadamente, elevá-lo a essa posição, adaptando-o às necessidades de todos e interpretando-o à luz da sabedoria do mundo.
O gnosticismo era, antes de tudo, um movimento especulador. O elemento especulativo sempre estava em primeiro plano, e o próprio nome “gnostikoi” indicava a pretensão de possuir um conhecimento mais profundo das coisas divinas do que os crentes comuns. Os gnósticos se envolveram com problemas profundos da filosofia e da religião, como a natureza do ser absoluto e a origem do mal, mas abordaram-nos de maneira desviada das verdades reveladas, derivando esses problemas do pensamento religioso pagão, e não do cristianismo. Eles desenvolveram uma cosmogonia fantástica, fazendo empréstimos de especulações orientais, na tentativa de combinar com as verdades do evangelho, buscando tornar o evangelho aceitável para as classes educadas e cultas.
Apesar de seu caráter especulativo, o gnosticismo também foi um movimento popular. Para influenciar as massas, procurou popularizar sua teoria cósmica através de ritos simbólicos, cerimônias místicas e o ensino de fórmulas mágicas em associações especiais. A iniciação nesses grupos envolvia fórmulas e ritos estranhos, tidos como proteção contra o poder do mundo e da morte, e como meios de acesso à bem-aventurança futura. Na realidade, isso representou uma tentativa de fundir o evangelho numa filosofia religiosa e sabedoria iniciática. No entanto, o gnosticismo reivindicava ser cristão, apelando para declarações alegóricas de Jesus e para uma tradição secreta supostamente transmitida desde os apóstolos.
O gnosticismo era também um movimento sincretista dentro da esfera do cristianismo. Há debate sobre se os gnósticos eram cristãos em algum sentido do termo. Alguns estudiosos argumentam que o gnosticismo era essencialmente pagão, buscando soluções para problemas do pensamento religioso pagão e apenas adornando suas discussões com um verniz cristão. Embora aparentemente valorizassem Jesus Cristo como um ponto decisivo na história humana e mestre da verdade absoluta, sua abordagem é descrita como uma “helenização aguda do cristianismo”. Outros consideram o gnosticismo como a apropriação de elementos cristãos para encobrir a essência do paganismo, uma “etnicização do cristianismo”.
Ensinos Principais:
Embora existissem diversos sistemas gnósticos, como os de Valentino e Basilides, alguns traços gerais caracterizavam o pensamento gnóstico.
- Dualismo Cósmico e Teológico: Um traço dualista percorria todo o sistema, manifestando-se na ideia de dois princípios ou deuses originais, opostos como superior e inferior, ou mesmo como bom e mau.
- Deus Supremo Inabordável: O deus supremo ou bom era concebido como um abismo insondável, distante e inacessível ao mundo material.
- Emanações Divinas (Aeons): Entre o deus supremo e as criaturas finitas existia uma longa cadeia de “aeons”, seres intermediários, emanações do divino que, em seu conjunto, constituíam o “pleroma” ou plenitude da essência divina. Apenas através desses seres intermediários o deus mais alto poderia entrar em contato com o mundo criado.
- Criação Imperfeita pelo Demiurgo: O mundo não foi criado pelo deus bom, mas provavelmente como resultado de uma queda no “pleroma”, sendo obra de uma divindade subordinada, talvez hostil, chamada Demiurgo. Esse Demiurgo era frequentemente identificado com o Deus do Velho Testamento, descrito como um ser inferior, limitado, cheio de paixões e vingativo, em contraste com o Deus supremo, fonte da bondade, virtude e verdade, que se revelou em Cristo.
- Cristo como Revelador Divino: Cristo era visto como uma emanação superior (um dos aeons) enviado pelo deus supremo para trazer conhecimento (gnosis) e revelar o caminho de volta ao pleroma. Sua vinda era para despertar o elemento espiritual (pneumático) nos homens, adormecido na matéria.
- Redenção pelo Conhecimento (Gnosis) e Ritos Secretos: A participação na redenção, ou vitória sobre o mundo material, só era obtida através do conhecimento secreto (epignosis) e dos ritos secretos das associações gnósticas. A iniciação nos mistérios, como o “casamento com Cristo”, um batismo peculiar, nomes mágicos e uma unção especial, era considerada o caminho da redenção. O gnosticismo tornou-se cada vez mais um sistema de mistérios religiosos.
- Antropologia Dualista e Elitista: Os homens eram divididos em três classes: os “pneumáticos” (espirituais), a elite capaz de obter o conhecimento superior e a mais elevada bem-aventurança; os “psíquicos” (alma), os membros comuns da Igreja que poderiam ser salvos pela fé e pelas obras, mas com uma bem-aventurança inferior; e os “hílicos” (material), os gentios considerados irremediavelmente perdidos.
- Ética Variável: A ética gnóstica, baseada em sua visão negativa da matéria e positiva do espírito, resultava em duas tendências opostas: um rígido ascetismo (para mortificar o corpo) ou uma permissividade libertina (já que a matéria era vista como inerentemente má e incapaz de afetar o espírito).
- Escatologia Não Tradicional: A doutrina da ressurreição dos mortos, como ensinada pela Igreja, não era reconhecida. Acreditava-se que, quando a alma fosse finalmente libertada da matéria, retornaria ao “pleroma”, e esse seria o fim.
Significação Histórica:
Apesar de ser um formidável inimigo da verdade, o gnosticismo não conseguiu deter o avanço do cristianismo. Embora muitos tenham sido temporariamente atraídos por suas especulações ousadas ou ritos místicos, a maioria dos crentes não foi enganada por suas fantasias. O gnosticismo foi relativamente efêmero, vencido pelas refutações dos Pais da Igreja, pela formulação de breves declarações dos fatos fundamentais da fé (regras de fé) e por uma interpretação mais racional do Novo Testamento, incluindo a limitação do seu cânon.
No entanto, o gnosticismo deixou uma impressão duradoura na Igreja. Algumas de suas peculiaridades foram absorvidas e, com o tempo, frutificaram na Igreja Católica Romana, como certas ideias sobre os sacramentos, a filosofia de um Deus escondido acessível apenas por intermediários (santos, anjos e Maria), a divisão dos homens em ordens superior e inferior, e a ênfase no ascetismo.
Indiretamente, o gnosticismo também beneficiou a Igreja, forçando-a a determinar claramente os limites da revelação divina e as relações entre o Velho e o Novo Testamento. Levou à consciência aguda da necessidade de formular breves declarações de verdade (regras de fé) baseadas em fórmulas batismais correntes. Houve também um evidente avanço doutrinário, com o cristianismo sendo concebido pela primeira vez como uma “doutrina” e um “mistério”, enfatizando o elemento intelectual da religião cristã e marcando o ponto de partida para o desenvolvimento doutrinário. A ideia cristã de Deus foi salva das especulações mitológicas gnósticas, e a Igreja tomou posse consciente da verdade de Deus como Ser Supremo, Criador e Sustentador do universo, o mesmo no Velho e no Novo Testamentos. A doutrina do Demiurgo e o dualismo gnóstico foram rejeitados. O caráter inigualável de Jesus Cristo como Filho de Deus foi enfatizado contra sua redução a um mero “aeon”, e sua autêntica humanidade foi defendida contra as negações docéticas. Os grandes fatos da vida de Cristo, sua concepção virginal, milagres, sofrimentos, morte e ressurreição, foram preservados e mais claramente definidos. Além disso, a doutrina da redenção pela obra expiatória de Cristo foi posta em primeiro plano, e a universalidade do evangelho foi salientada contra o exclusivismo gnóstico.
Em suma, o gnosticismo representou um desafio multifacetado à fé cristã primitiva, com suas ideias complexas sobre a divindade, a criação, a humanidade e a salvação. Sua ênfase em um conhecimento esotérico e sua mistura de elementos religiosos diversos levaram a doutrinas que foram consideradas heresias pela Igreja, mas que, paradoxalmente, estimularam o desenvolvimento da teologia cristã ortodoxa.