Martinho Lutero desafiou uma vasta gama de doutrinas e práticas da igreja medieval, desencadeando a Reforma Protestante. Suas objeções e reformas abrangeram desde questões práticas, como a venda de indulgências, até os fundamentos teológicos da fé cristã, como a justificação e a autoridade da Escritura.
Um dos primeiros e mais visíveis desafios de Lutero foi contra a prática e o abuso das indulgências. Indulgências eram documentos emitidos pela igreja que, sob certas circunstâncias, podiam conceder remissão da punição temporal pelos pecados após a confissão e absolvição. A venda de indulgências, particularmente a maneira como estava sendo promovida por pregadores como Johann Tetzel para financiar a reconstrução da Basílica de São Pedro em Roma, indignou Lutero. Tetzel propagava que “assim que a moeda tilinta no cofre, uma alma do purgatório para o céu se eleva!”.
Em suas 95 Teses, afixadas em Wittenberg em 1517, Lutero não atacou a ideia de indulgências em si, mas sim os abusos e a teologia subjacente que pareciam minar a genuína contrição e o arrependimento. Ele argumentou, por exemplo, que quem via uma pessoa necessitada e, em vez de ajudar, usava seu dinheiro para uma indulgência, não obtinha uma indulgência do papa, mas o desagrado de Deus. Ele também questionou por que o papa não esvaziava o purgatório por amor santo, já que libertava inúmeras almas por dinheiro para a construção de uma catedral. As teses de Lutero, originalmente destinadas a um debate acadêmico, foram rapidamente traduzidas para o alemão e disseminadas por toda a Alemanha graças à tecnologia da imprensa, gerando grande agitação.
Lutero também desafiou o sistema sacramental da Igreja Católica Romana. A igreja medieval reconhecia sete sacramentos: batismo, confirmação, eucaristia (ou Santa Ceia), penitência, unção dos enfermos, ordem e matrimônio. Em sua obra de 1520, O Cativeiro Babilônico da Igreja, Lutero reduziu o número de sacramentos primeiramente para três (batismo, Santa Ceia e penitência), e depois para apenas dois: batismo e a Santa Ceia. Ele argumentou que apenas esses dois foram claramente instituídos por Cristo nas Escrituras. Ele rejeitou a confirmação, o matrimônio, a ordem e a unção dos enfermos como sacramentos no sentido bíblico.
Em relação à Santa Ceia, Lutero contestou várias doutrinas tradicionais. Ele argumentou que os leigos não deveriam ser privados do cálice (que continha o vinho, representando o sangue de Cristo) durante a comunhão. A igreja medieval geralmente oferecia apenas o pão aos leigos. Lutero também rejeitou a doutrina da transubstanciação, que ensinava que durante a missa, o pão e o vinho eram transformados no corpo e sangue literais de Cristo, embora suas aparências externas permanecessem as mesmas. Embora Lutero não adotasse o ponto de vista puramente simbólico de outros reformadores, ele acreditava na presença real de Cristo “em, com e sob” os elementos do pão e do vinho, uma visão conhecida como consubstanciação. Além disso, Lutero via a Missa não como uma repetição do sacrifício de Cristo, mas como uma celebração memorial e um meio de receber a graça de Deus através da fé.
Lutero desafiou fundamentalmente a autoridade dentro da igreja. Ele questionou a autoridade suprema do Papa e dos concílios da igreja, argumentando que a Bíblia era a única fonte infalível de fé e doutrina cristã (sola Scriptura). No Debate de Leipzig em 1519, Lutero foi levado por Johann Eck a admitir que papas e concílios poderiam errar, e que somente a Bíblia podia ser confiada como fonte infalível. Lutero declarou que “um simples leigo armado com as Escrituras” era superior tanto ao papa quanto aos concílios sem elas. Essa postura minou a estrutura hierárquica da igreja medieval, que colocava a tradição e os pronunciamentos papais em pé de igualdade, ou até mesmo acima, das Escrituras em termos de autoridade doutrinária. Lutero não rejeitou a tradição por completo, respeitando os escritos dos primeiros Padres da Igreja e os credos ecumênicos, mas insistiu que todos deveriam ser julgados pela “regra segura da Palavra de Deus”. Para Lutero, a igreja não precedia a Bíblia; ao contrário, a igreja era criada pela Bíblia.
No cerne da teologia reformadora de Lutero estava a doutrina da justificação pela fé sozinha (sola fide). Essa doutrina contrastava fortemente com o entendimento medieval, que enfatizava a necessidade de fé e obras (incluindo a participação nos sacramentos e a prática de boas obras) para a salvação. Lutero, com base em sua leitura e meditação em Romanos 1:17 (“o justo viverá pela fé”), chegou à conclusão de que a “justiça de Deus” não era apenas a justiça pela qual Deus pune os pecadores, mas também a justiça que Deus imputa aos pecadores através da fé em Cristo. Para Lutero, a salvação não era algo que os humanos poderiam alcançar por seus próprios esforços ou méritos, mas sim um dom gratuito de Deus, recebido unicamente pela fé em Jesus Cristo e em seu sacrifício expiatório. Ele considerava a justificação pela fé “o resumo de toda a doutrina cristã” e “o artigo pelo qual a igreja permanece ou cai”.
Ligada à justificação pela fé estava a doutrina da graça sozinha (sola gratia). Lutero ensinava que a salvação era inteiramente um ato da graça soberana de Deus, e não resultado de qualquer mérito ou livre arbítrio humano. Ele argumentou que a vontade humana estava escravizada pelo pecado e por Satanás, e que somente a graça divina poderia libertá-la e capacitá-la a responder a Deus em fé. Essa visão contrastava com a teologia prevalecente que, embora reconhecesse a importância da graça, também enfatizava a capacidade humana de cooperar com a graça divina na busca pela salvação.
Outra reforma doutrinária significativa de Lutero foi o conceito do sacerdócio de todos os crentes. Ele argumentou que, através do batismo, todos os cristãos tinham acesso direto a Deus por meio de Cristo e compartilhavam um sacerdócio espiritual. Isso desafiou a distinção hierárquica entre o clero (sacerdotes e bispos) e os leigos, que era central para a estrutura da igreja medieval. Lutero ensinava que os ministros eram servos da congregação, com a função primordial de pregar a Palavra de Deus e administrar os sacramentos, mas não possuíam um “estado” espiritual superior ao dos leigos. Ele urgiu os governantes a tomarem nas próprias mãos a necessária reforma da igreja, argumentando que todos os cristãos eram sacerdotes.
Lutero também abordou a questão dos votos monásticos. Em sua obra Sobre os Votos Monásticos, ele argumentou que esses votos não eram obrigatórios e que a questão principal era como melhor servir ao próximo. Se alguém pudesse servir melhor ao próximo fora do mosteiro, então deveria viver no mundo. Essa perspectiva contribuiu para o êxodo de monges e freiras de seus mosteiros e claustros durante a Reforma.
Em resumo, as principais reformas e doutrinas desafiadas por Lutero incluíram:
- A prática e a teologia das indulgências.
- O número e a natureza dos sacramentos, reduzindo-os a batismo e Santa Ceia e alterando a compreensão da Eucaristia e da penitência.
- A autoridade do Papa e dos concílios, elevando a Escritura como a única autoridade infalível (sola Scriptura).
- A doutrina da justificação pela fé sozinha (sola fide) como o meio de salvação.
- A centralidade da graça sozinha (sola gratia) na salvação, negando a capacidade humana de alcançar a salvação por mérito próprio.
- O sacerdócio de todos os crentes, desafiando a distinção hierárquica entre clero e leigos.
- A obrigatoriedade dos votos monásticos.
Esses desafios doutrinários e práticos lançaram as bases para a Reforma Protestante e tiveram um impacto profundo e duradouro na história do cristianismo e do mundo ocidental. A ênfase de Lutero na autoridade da Escritura, na salvação pela graça mediante a fé em Cristo, e no sacerdócio de todos os crentes transformou a compreensão da fé cristã e a estrutura da igreja.