No século XVI, Martinho Lutero liderou uma reforma significativa na compreensão da Ceia do Senhor, marcando uma distinção clara das doutrinas católicas medievais. Sua concepção da presença de Cristo na Eucaristia evoluiu ao longo do tempo, mas manteve um foco central na realidade dessa presença, embora diferente da transubstanciação.
Inicialmente, Lutero via o pão e o vinho da Ceia do Senhor como sinais e selos do perdão dos pecados. Esta perspectiva inicial enfatizava a função simbólica dos elementos, conectando-os à promessa evangélica da remissão dos pecados através de Cristo. No entanto, sua interpretação das palavras da instituição (“Isto é o meu corpo… Isto é o meu sangue”) o levou a adotar um ponto de vista diferente, que o colocou em desacordo com outros reformadores, como Zwínglio.
Lutero passou a asseverar a necessidade de tomar literalmente as palavras de Cristo na instituição da Ceia. Ele entendeu que havia uma presença corporal real de Cristo no sacramento. Essa crença na presença real distinguia sua teologia eucarística da interpretação figurativa defendida por Zwínglio, que entendia o “é” como “significa”. Para Lutero, as palavras de Cristo não poderiam ser meramente simbólicas, mas deveriam indicar uma realidade substancial presente na Ceia.
Ao mesmo tempo em que afirmava a presença corporal real de Cristo, Lutero rejeitava categoricamente a doutrina católica romana da transubstanciação. A transubstanciação ensinava que, no momento da consagração, toda a substância do pão e do vinho se transformava no corpo e sangue de Cristo, permanecendo apenas as aparências (acidentes) dos elementos. Lutero, influenciado por Guilherme de Ockham, adotou a doutrina da consubstanciação para explicar a presença de Cristo. A consubstanciação ensina que o corpo e o sangue de Cristo estão presentes “em, com e sob” as formas visíveis do pão e do vinho. Diferentemente da transubstanciação, a substância do pão e do vinho permanece, coexistindo com a presença real do corpo e sangue de Cristo.
No seu Catecismo Maior, Lutero expressou essa doutrina de forma concisa: “O próprio corpo e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo, segundo a palavra de Cristo, são instituídos e dados para nós cristãos a serem comidos e bebidos em e sob o pão e o vinho“. Esta formulação encapsula a sua crença na união sacramental dos elementos terrenos com a realidade celestial do corpo e sangue de Cristo.
Um aspecto importante da concepção luterana era a crença de que o corpo de Cristo é recebido também pelos incrédulos que participam do sacramento, embora para a condenação deles. Para Lutero, a eficácia do sacramento não dependia da fé do receptor para a presença real de Cristo, mas sim para o benefício ou dano que essa presença traria.
A doutrina da presença real de Cristo na Ceia teve implicações para outros aspectos da cristologia luterana, particularmente a doutrina da comunicação de atributos (communicatio idiomatum). A crença na presença corporal de Cristo em múltiplos lugares levou à ideia de que, após a ascensão, a natureza humana de Cristo se tornou de alguma forma participante dos atributos divinos, incluindo a onipresença. A communicatio idiomatum na teologia luterana significava que “cada uma das naturezas de Cristo permeia a outra (perichoresis), e que Sua humanidade participa dos atributos de Sua divindade“.
No entanto, essa doutrina gerou debates dentro do próprio luteranismo. Havia uma hesitação em atribuir atributos humanos à natureza divina, e esse aspecto foi eventualmente abandonado. A Fórmula de Concórdia, um documento confessional luterano, tentou harmonizar essas ideias, afirmando que a natureza divina infunde seus atributos à natureza humana, mas o exercício desses atributos depende da vontade do Filho de Deus. Contudo, a própria Fórmula era vista como ambígua e potencialmente incoerente nesse ponto.
A doutrina da comunicação de atributos também levou a controvérsias sobre como explicar a vida de humilhação de Cristo nos Evangelhos. Os teólogos de Giessen argumentavam que Cristo havia posto de lado os atributos divinos durante a encarnação ou os usava apenas ocasionalmente, enquanto os teólogos de Tubingen defendiam que Ele sempre possuíra esses atributos, mas os ocultava ou os usava secretamente. A Fórmula de Concórdia inclinou-se mais para a primeira ideia, sugerindo que a presença de poderes divinos na humanidade de Cristo se tornou uma mera potencialidade.
Em suma, a concepção luterana da presença de Cristo na Ceia do Senhor centrava-se na presença corporal real de Cristo em, com e sob o pão e o vinho (consubstanciação), resultante de uma interpretação literal das palavras da instituição. Essa doutrina, que rejeitava tanto o mero simbolismo quanto a transubstanciação, estava intrinsecamente ligada à sua compreensão da união das naturezas em Cristo e à doutrina da comunicação de atributos, gerando discussões e refinamentos dentro da tradição luterana ao longo do tempo.