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A Raiz de Todos os Males: Riqueza, Pobreza e a Igreja Primitiva

O amor ao dinheiro é a raiz de todos os males. Esta afirmação, escrita pelo apóstolo Paulo em sua carta a Timóteo, ecoa através dos séculos, revelando uma das tensões mais profundas e duradouras na história do cristianismo.

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Desde os primórdios, a fé cristã, nascida nas margens do Império Romano, enfrentou um desafio inevitável: como um seguidor de Jesus Cristo, um carpinteiro da Galileia que não possuía bens materiais, deveria lidar com a riqueza, o poder e as posses terrenas?

A resposta construída pelos primeiros cristãos não apenas os diferenciou radicalmente do mundo ao seu redor, mas também estabeleceu um padrão que desafiaria a igreja por milênios, criando um legado complexo que ainda ressoa em nossos debates sobre justiça social, caridade e o propósito da vida.

A Lógica Romana da Escassez

Imagine a Roma do segundo século. Um homem chamado Tito Aélio Evangelius, um escravo liberto, trabalha a lã com as mãos calejadas. Sua imagem, esculpida em mármore, sobreviveu até hoje, um testemunho silencioso de uma vida de labor. Ele vive em um mundo governado por uma lógica de ferro: a da escassez.

Para os romanos, qualquer bem desejável – seja riqueza, honra, terras ou poder – existia em quantidade finita. Esta mentalidade, conhecida como a teoria do “bem limitado”, significava que o enriquecimento de uma pessoa acontecia, quase que invariavelmente, às custas de outra.

A única forma “honrada” de adquirir fortuna era através da herança ou da produção autossuficiente em uma grande propriedade. O comércio, a busca pelo lucro, era visto com desdém, associado à ganância e à mesquinhez.

Os filósofos e moralistas da época, como Sêneca, elogiavam a generosidade como a virtude suprema do aristocrata, mas essa generosidade era calculada. Essa lógica social se manifestava no sistema de patronato.

Um patrão, o superior social, oferecia proteção e benefícios – comida, dinheiro, recomendações – a seus clientes, os dependentes. Em troca, o cliente retribuía com lealdade, votos e, acima de tudo, louvor público, que aumentava a honra e o status do patrão. O próprio imperador era o patrão supremo, garantindo ao povo de Roma pão e circo, não por compaixão, mas como uma ferramenta de estabilidade e poder.

Foi por causa desse sistema que a justiça romana era distributiva com base no status, não na necessidade. Um cidadão importante recebia mais do que um trabalhador comum, e os mais pobres, os mendigos e destituídos, eram simplesmente invisíveis, excluídos da comunidade cívica e, portanto, da “justiça”. A pobreza era uma realidade onipresente, mas socialmente ignorada.

A Subversão Cristã da Generosidade Radical

Enquanto Tito Aélio Evangelius processa sua lã, em um canto escondido da mesma cidade, um pequeno grupo se reúne em uma casa. Eles não são ricos nem poderosos. Muitos são artesãos como Tito, escravos, imigrantes recentes. Eles partem o pão, oram e, em seguida, algo estranho acontece. Eles recolhem moedas, alimentos, roupas.

Uma viúva da comunidade perdeu o sustento; um irmão está doente e não pode trabalhar. Os recursos são reunidos e entregues com base em uma única métrica: a necessidade. Eles não buscam honra ou status. Eles o fazem porque seguem um mestre que lhes ensinou uma lógica diferente, uma que subvertia completamente o mundo romano.

Para entender essa nova ética, precisamos recuar no tempo, para ouvir as vozes que moldaram a mente de Jesus e seus seguidores. A herança judaica era radicalmente diferente da romana. A Torá declara que a terra pertence a Yahweh, e a prosperidade material é vista como uma bênção de Deus pela obediência.

Contudo, essa mesma Torá estabelece uma rede complexa de obrigações sociais para proteger os mais vulneráveis: os pobres, as viúvas, os órfãos e os estrangeiros. A lei do sábado, o ano sabático e o Jubileu eram mecanismos divinamente ordenados para prevenir a pobreza perpétua e a concentração extrema de riqueza.

Essa preocupação se torna um clamor apaixonado nos profetas. Amós, Isaías, Miqueias – suas vozes ecoam pelos séculos, denunciando os ricos e poderosos que “ajuntam casa a casa” e “oprimem o pobre”. Para eles, a idolatria e a injustiça social eram duas faces da mesma moeda. A adoração a deuses falsos levava inevitavelmente ao desprezo pelo próximo criado à imagem do Deus verdadeiro.

Essa decisão de conectar a adoração correta com a justiça social se tornou uma marca indelével da fé de Israel. Nos Salmos, essa teologia se aprofunda. O salmista frequentemente se identifica como “pobre e necessitado”, não apenas em um sentido material, mas espiritual. Os “pobres” (anawim, em hebraico) são os humildes, os aflitos, aqueles que, em sua impotência, se voltam inteiramente para Deus em busca de ajuda e salvação. Deus é o seu defensor, o protetor justo dos oprimidos.

Foi por causa dessa longa meditação sobre sofrimento e fé que uma nova e poderosa dicotomia começou a surgir no período do Segundo Templo: a dos “pobres piedosos” e dos “ricos perversos”. Acreditava-se que, no fim dos tempos, Deus promoveria uma “grande inversão”, na qual a sorte terrena de cada grupo seria revertida na eternidade.

Jesus e a Inversão do Reino

É neste cenário de opressão romana e fervorosa esperança escatológica que Jesus de Nazaré inicia seu ministério. A Palestina do primeiro século estava em ebulição. A riqueza estava concentrada nas mãos de uma pequena elite sacerdotal e aristocrática que colaborava com Roma, enquanto a maioria da população, formada por camponeses e artesãos, afundava na pobreza e nas dívidas.

Jesus, acreditando que a nova era de Deus havia chegado com Ele, herda e intensifica essa tradição dos “pobres piedosos”. As suas palavras são diretas e desconcertantes. Ele anuncia que as boas novas são para os pobres e que deles é o Reino de Deus.

Em uma de suas bem-aventuranças, registrada por Lucas, ele declara: “Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o Reino de Deus” (Lucas capítulo seis versículo vinte). Logo em seguida, vem a advertência: “Mas ai de vós, os ricos, porque já tendes a vossa consolação” (Lucas capítulo seis versículo vinte e quatro). Essa não é uma simples condenação da riqueza em si, mas do que ela representa.

Jesus fala de uma antítese irreconciliável entre servir a Deus e servir a Mamon – uma palavra aramaica que personifica a riqueza como uma força, um poder rival que exige lealdade e serviço. Essa decisão de enquadrar a riqueza não como um bem neutro, mas como um potencial ídolo, está no centro de seu ensinamento. A cena do jovem rico é talvez a mais reveladora.

Um homem de alta posição, genuinamente piedoso, pergunta a Jesus o que fazer para herdar a vida eterna. Após confirmar que ele guarda os mandamentos, Jesus o olha com amor e lhe dá o golpe final: “Uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens, dá-o aos pobres e terás um tesouro no céu; e vem, segue-me” (Marcos capítulo dez versículos dezessete a vinte e um).

O homem vai embora triste, porque tinha muitas propriedades. A reação de Jesus é chocante para os discípulos: “Quão dificilmente entrarão no Reino de Deus os que têm riquezas! É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no Reino de Deus” (Marcos capítulo dez versículos vinte e três a vinte e cinco).

A riqueza, aqui, não é apenas um obstáculo; é um apego que impede o seguimento, uma falsa segurança que compete com a confiança radical em Deus. É por isso que hoje, a teologia da prosperidade, que equipara a bênção divina à riqueza material, entra em conflito tão direto com o registro dos Evangelhos. Ela ignora a advertência de Jesus sobre o perigo espiritual inerente à acumulação.

A Comunhão Radical e a Generosidade Teológica

Os primeiros seguidores de Jesus levaram essa mensagem a sério. A comunidade de Jerusalém, descrita nos Atos dos Apóstolos, praticava uma forma de comunhão de bens que era tanto radical quanto pragmática. Eles “tinham tudo em comum” e distribuíam os recursos “a cada um segundo a sua necessidade” (Atos capítulo dois versículos quarenta e quatro e quarenta e cinco, Atos capítulo quatro versículo trinta e cinco). O resultado, segundo Lucas, era que “não havia entre eles necessitado algum” (Atos capítulo quatro versículo trinta e quatro).

Isso não era um comunismo primitivo imposto, mas uma generosidade voluntária e explosiva, nascida da convicção de que eles eram uma nova família, a família de Deus, e que a ressurreição de Cristo havia inaugurado uma nova realidade.

Quando o movimento se expandiu para as cidades do Império Romano, como as comunidades fundadas por Paulo, a composição social era mais variada. Embora a maioria fosse de trabalhadores livres, artesãos e escravos, havia também membros com recursos moderados, donos de casas que podiam sediar as assembleias da igreja e atuar como “patrões” para a comunidade.

Pessoas como Febe, Gaio e Filemom usaram sua posição e riqueza não para aumentar sua própria honra, como faria um patrão romano, mas para servir à comunidade cristã. Paulo os elogia não por sua riqueza, mas por seu serviço. É nesse contexto que Paulo desenvolve sua teologia da generosidade.

Ele ensina sobre a hospitalidade, o cuidado com os pobres (especialmente o de Jerusalém, que ele menciona em Gálatas capítulo dois versículo dez), e a importância de trabalhar para não ser um fardo. Sua grande coleta para os crentes necessitados da Judeia não foi apenas um ato de caridade. Foi uma demonstração teológica e política poderosa.

Essa decisão de unir gentios e judeus através de uma oferta financeira era uma prova da unidade do corpo de Cristo, um elo tangível que legitimava o ministério de Paulo aos gentios e mostrava que eles não haviam esquecido suas raízes em Jerusalém.

A base para essa generosidade, Paulo argumenta, é a própria generosidade de Cristo, que, “sendo rico, por amor de vós se fez pobre, para que pela sua pobreza enriquecêsseis” (Segunda aos Coríntios capítulo oito versículo nove).

As cartas pastorais, como Primeira a Timóteo, continuam essa linha de pensamento. Aos ricos, a ordem não é que se desfaçam de tudo, mas que não coloquem sua esperança na “incerteza das riquezas”, e sim em Deus. Eles são exortados a serem “ricos em boas obras, prontos a repartir, e generosos”. O resultado seria um “tesouro, um bom fundamento para o futuro”.

O amor ao dinheiro é explicitamente listado como uma desqualificação para a liderança da igreja, em contraste direto com a ganância que, segundo os autores do Novo Testamento, caracterizaria os falsos mestres.

A Institucionalização da Caridade

Nos séculos segundo e terceiro, a igreja cristã cresceu exponencialmente. Espalhou-se pelos centros urbanos do mundo de língua grega, pela Síria, e pelo Ocidente latino. Apesar do desprezo de críticos pagãos como Celso, que zombava do cristianismo como uma religião de ignorantes, escravos e mulheres, a composição social da igreja espelhava a pirâmide da sociedade romana: uma vasta maioria das camadas mais baixas, mas com uma minoria crescente vinda das elites.

A conversão de mulheres de alta posição, a produção de literatura apologética sofisticada por homens como Justino Mártir e Tertuliano, e a crescente capacidade organizacional da igreja indicavam que um número significativo de pessoas do topo da pirâmide social estava se juntando ao movimento. Essa mudança trouxe novos desafios. Como a igreja, agora com membros ricos e influentes, lidaria com o ensinamento radical de seu fundador? A resposta evoluiu.

A salvação, entendida como um processo que começava no batismo, exigia uma vida de transformação, de “despir-se do velho homem e vestir-se do novo”. As boas obras, especialmente a esmola (caridade), ganharam uma importância cada vez maior. Foi por causa do problema teológico do pecado cometido após o batismo que a esmola começou a adquirir um significado quase salvífico.

Autores como Cipriano de Cartago, em meados do século terceiro, argumentavam que as esmolas podiam, de certa forma, “lavar” os pecados pós-batismais. Essa ideia, embora controversa, mostrava o quão seriamente a igreja primitiva levava a responsabilidade material.

Essa decisão levou a outra transformação crucial: a institucionalização da caridade. O que antes era uma partilha espontânea dentro da comunidade tornou-se um ministério centralizado, supervisionado pelos bispos. A igreja começou a organizar listas de viúvas e órfãos que recebiam sustento regular, a cuidar dos doentes e a enterrar os mortos. O bispo tornou-se o administrador da caridade da igreja, o que aumentou enormemente seu poder e influência.

A igreja estava se tornando uma instituição de bem-estar social, uma rede de segurança em um império que oferecia pouco ou nada aos seus membros mais vulneráveis. É por isso que hoje, muitas das mais antigas instituições de caridade, hospitais e orfanatos do mundo têm raízes na igreja. Elas são o resultado direto dessa decisão dos primeiros cristãos de organizar e centralizar o cuidado com os necessitados.

Onde Está o Nosso Tesouro?

Assim, o fio invisível se estende desde a lógica de ferro do patronato romano e a indignação dos profetas hebreus, passando pela subversão radical de Jesus, até a caridade organizada da igreja dos séculos segundo e terceiro. A tradição do “pobre piedoso” e do “rico perverso” não era um simples slogan, mas uma teologia vivida que moldou a identidade cristã.

Ela criou uma comunidade que, em seu melhor, oferecia uma alternativa real ao sistema de honra e exploração do Império. No entanto, essa herança é complexa. A mesma institucionalização que permitiu à igreja cuidar de tantos também a tornou rica e poderosa. A mesma teologia da esmola que incentivava a generosidade podia, por vezes, ser distorcida em uma forma de “comprar” o favor de Deus. A tensão entre servir a Deus e a Mamon nunca desapareceu.

Ela apenas assumiu novas formas ao longo dos séculos, desde os monges medievais que faziam voto de pobreza até os reformadores que criticavam a venda de indulgências, e dos debates modernos sobre o papel da igreja na busca por justiça econômica.

A história dos primeiros cristãos e sua relação com a riqueza não nos oferece respostas fáceis, mas nos confronta com a mesma pergunta fundamental que eles enfrentaram. A questão que pairava sobre o artesão Tito Aélio Evangelius, sobre o jovem rico que se afastou triste, e sobre a comunidade que partilhava seus bens em Jerusalém, é a mesma que nos encara hoje, em um mundo de desigualdade gritante e consumismo desenfreado: em que, ou em quem, colocamos nossa esperança?

Onde está o nosso tesouro? A resposta a essa pergunta continua a definir, mais do que qualquer outra coisa, a autenticidade da fé cristã.

Bibliografia:

  • Autora: Helen Rhee
  • Título: Wealth and Poverty in Early Christianity (Riqueza e Pobreza no Cristianismo Primitivo)
  • Publicação original: Christian History, Edição #147, 2023
  • Fonte editorial: Adaptado do livro Wealth and Poverty in Early Christianity, editado por Helen Rhee, publicado pela 1517 Media, com permissão.
  • Créditos adicionais: Helen Rhee é professora de História do Cristianismo no Westmont College, autora de Loving the Poor, Saving the Rich e Early Christian Literature, além de ministra ordenada da Free Methodist Church.

Principais referências bíblicas utilizadas no artigo:

  • 1Tm 6:10, Mt 6:24, Lc 16:13, Mt 19:21, Mc 10:21, Lc 18:22, Mt 5:3, Mt 11:5, Lc 6:20, Lc 7:22–23, Lc 6:24, Mt 19:24, Mc 4:19, Lc 12:33, Mt 6:19–20, At 2:42–47, At 4:32–37, Rm 16:1–2, Rm 16:23, 1Co 1:14, Fm 1–2, Hb 13:2, Hb 13:16, 1Pe 4:9, 3Jo 5–8, Gl 2:10, Ef 4:28, 1Ts 4:11–12, 2Ts 3:6–12, 1Co 5:11, 1Tm 3:8, Tt 1:7, Rm 12:8, Rm 12:13, 1Co 16:2, 2Co 8:2, Ef 4:28, 2Co 8:9, Rm 15:26, Rm 15:31, 1Co 16:3, 2Co 8:14, Gl 2:10, Tt 2:14, Tt 3:8, Gl 6:9–10, 1Tm 6:17–19, 1Tm 3:3, 1Tm 3:8, 1Tm 6:10, Hb 13:5a, 1Pe 5:2, 2Tm 3:2, 2Tm 3:4, Tt 1:11, 2Pe 2:3, 2Pe 2:14, Mt 6:24b

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