O casamento de Martinho Lutero em 1525 com Catarina von Bora desafiou profundamente as tradições da sua época em múltiplos níveis. Ao se casar, Lutero, um ex-monge, transgrediu séculos de ensinamentos e práticas da Igreja Católica Romana, que exaltavam o celibato como o ideal cristão, especialmente para o clero.
Durante séculos, a vida solteira e celibatária era considerada o padrão de excelência na vida cristã. O sexo, embora tolerado dentro do matrimônio, não era visto como algo a ser desfrutado por si só. Pensadores da igreja, como Jerônimo no século IV, declaravam que qualquer um que fosse um amante demasiado apaixonado pela própria esposa era adúltero. A igreja medieval estava obcecada pela castidade e pureza sexual, e mesmo dentro do casamento, o ato sexual era frequentemente visto com suspeita, sendo justificado principalmente para procriar ou evitar o pecado da concupiscência, e não para o prazer mútuo. Catecismos vernáculos da época detalhavam como os leigos pecavam no “dever marital”, incluindo ter relações sexuais pela simples alegria.
Dentro deste contexto, a exigência de celibato para o clero era uma pedra angular da estrutura da igreja. Sacerdotes, monges e freiras faziam votos de castidade, comprometendo-se a uma vida sem casamento e sem relações sexuais. Este celibato clerical era defendido por razões teológicas e práticas, incluindo a crença de que um clero celibatário poderia se dedicar totalmente aos assuntos espirituais e à igreja, sem as distrações e os laços familiares. A proibição do casamento clerical era uma das práticas da Igreja Católica que Lutero e outros reformadores contestaram vigorosamente.
A decisão de Lutero de se casar em 1525, quando tinha 41 anos, enviou ondas de choque por toda a Europa. Ele não apenas era um ex-monge que havia feito votos de celibato, mas também uma figura central e controversa na nascente Reforma Protestante. Seu casamento foi um desafio direto à autoridade papal e à tradição canônica que proibia o casamento de padres. Lutero declarou que se casou, não por amor ou desejo sexual, mas para agradar seu pai, que desejava netos; para desafiar o papa, que proibia o casamento clerical; e para testemunhar suas convicções antes de ser martirizado. Ele chegou a comentar que seus melhores amigos não aprovaram sua escolha.
A esposa de Lutero, Catarina von Bora, era uma ex-freira que, juntamente com outras, havia escapado do seu convento em 1523 com a ajuda de Lutero. O resgate de freiras era uma ofensa capital, sublinhando a ousadia do ato. Inicialmente, Lutero não estava interessado em se casar, chegando a dizer que não estava inclinado a tomar esposa, não por falta de sentimentos, mas porque esperava diariamente a morte decretada ao herege. No entanto, encorajado pelos seus pais, ele se casou “rápida e secretamente”.
As reações ao casamento de Lutero foram variadas e intensas. Os seus oponentes católicos viram o casamento como uma afronta aos votos sagrados e um sinal da depravação da Reforma. Henrique VIII da Inglaterra considerou a união um “crime”. Um panfleto católico chamou Catarina de uma “mulher pobre e caída” que havia passado “da santa religião enclausurada para uma vida danável e vergonhosa”. Até mesmo alguns dos amigos de Lutero esperavam que o casamento o “sossegaria” e o faria abandonar a “baixa palhaçada” que eles frequentemente censuravam.
No entanto, para os reformadores e muitos dos seus seguidores, o casamento de Lutero foi um ato de coragem e uma afirmação da santidade do matrimônio. Ao se casar, Lutero rejeitou implicitamente a visão de que o celibato era espiritualmente superior ao casamento. Ele elevou o matrimônio e a vida familiar, colocando “o lar no centro do universo”. Sua teologia passou a ver o casamento como uma parte natural e necessária da vida, inerente à própria natureza criada, onde todas as criaturas são divididas em macho e fêmea. Ele argumentou que “não se pode ser solteiro sem pecado” e que o casamento era a única instituição onde uma vida casta poderia ser mantida.
Lutero não apenas desafiou a tradição ao se casar, mas também ao modelar uma nova forma de vida familiar para os pastores protestantes. Ele e Catarina tiveram seis filhos, e a sua casa tornou-se um lar acolhedor para estudantes, parentes órfãos e hóspedes frequentes. Catarina desempenhou um papel crucial na gestão do lar e das finanças, sendo chamada por Lutero de “minha Lorde Kate”. A sua relação, que começou sem “amor” romântico, floresceu em profundo afeto e respeito mútuo. Lutero expressou o seu carinho pela esposa de várias maneiras, chegando a chamar a Epístola aos Gálatas de “minha Catarina von Bora”.
O casamento de Lutero e a sua defesa teológica do matrimônio tiveram um impacto duradouro. Ele contribuiu para uma reavaliação do papel das mulheres e da importância da vida familiar na tradição cristã. Ao se casar, Lutero não apenas desafiou uma tradição profundamente enraizada, mas também forneceu um modelo para o clero protestante casado, ajudando a remodelar a estrutura social e religiosa da Europa do século XVI e além. O seu ato simbólico ajudou a transferir as homenagens que a tradição cristã acumulava sobre os religiosos em mosteiros e conventos para o casamento e o lar.