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Márcion e Seu Movimento de Reforma

Quem foi Márcion?

Márcion, um indivíduo de profunda devoção e notável habilidade, nasceu em Sinope, Ponto, por volta do ano 139 d.C. Ele era conhecido por seu trabalho dedicado, semelhante ao de um escultor moldando uma obra de arte. Após ser expulso de casa, aparentemente devido a alegações de adultério, Márcion viajou para Roma. Em Roma, ele inicialmente tentou influenciar a Igreja de acordo com suas crenças, mas não obteve sucesso em seus esforços de reforma. Como resultado, ele estabeleceu uma igreja independente para seus seguidores, buscando disseminar suas perspectivas por meio de uma propaganda vigorosa.

Deus e a Criação Segundo Márcion

Para Márcion, a questão crucial era a relação entre o Antigo e o Novo Testamento. Ele encontrou a chave para essa questão na Epístola aos Gálatas, que destaca a oposição dos judaizantes a Paulo. Baseando-se na suposição de que outros apóstolos compartilhavam dessa oposição, ele se convenceu de que o evangelho havia sido comprometido pela influência da lei. Determinado a separar o evangelho da lei, Márcion formulou sua teoria de contrastes ou antíteses. Ele reconhecia a autenticidade do Antigo Testamento como uma revelação do Deus dos judeus, mas argumentava que esse Deus não poderia ser o mesmo do Novo Testamento.

Márcion acreditava na existência de dois deuses: um deus inferior que criou o mundo material e um Deus supremo, o Pai de Jesus Cristo. Ele argumentava que o Deus do Novo Testamento, o Pai de Jesus Cristo, não era o mesmo Jeová do Antigo Testamento. Jeová, sendo um deus ciumento e arbitrário, favoreceu um povo acima de outros e buscava vingança contra aqueles que o desobedecessem. Ele representava um Deus de justiça. O Pai de Jesus, por outro lado, era caracterizado pelo amor e misericórdia. Ele não impunha leis, mas convidava ao amor e oferecia salvação gratuitamente.

Márcion sustentava que o objetivo do Pai não era este mundo com suas imperfeições, mas um mundo puramente espiritual. No entanto, Jeová, seja por ignorância ou malícia, criou o mundo material e colocou a humanidade nele. Márcion não via Jeová como o princípio do mal em oposição ao Deus do Novo Testamento, mas como um Deus inferior.

Jesus Cristo na Visão Marcionita

De acordo com Márcion, o Deus bom, movido por compaixão pelas criações de Jeová, enviou seu Filho para salvá-las. No entanto, Jesus não nasceu de Maria, pois isso o teria sujeitado a Jeová. Em vez disso, ele se manifestou repentinamente como um homem adulto durante o reinado do imperador Tibério. Como o corpo de Cristo não era real, a crucificação não o afetou. Cristo proclamou uma mensagem de amor e libertação da lei do Deus do Antigo Testamento, abrindo um caminho de salvação para todos os crentes, incluindo os ímpios do outro mundo.

Segundo Márcion, no final não haveria julgamento, pois o Deus supremo era totalmente amoroso e perdoava completamente. A maioria da humanidade pereceria, não por punição do Deus bom, mas por não serem aceitos por Ele.

O Cânone Marcionita

Márcion rejeitava o Antigo Testamento como escritura cristã, considerando-o a palavra de um ser inferior. Ele acreditava que Paulo era o único apóstolo que realmente compreendeu o evangelho de Jesus Cristo, levando-o a limitar o cânone do Novo Testamento ao Evangelho de Lucas e a dez epístolas de Paulo. As citações do Antigo Testamento encontradas nesses textos, segundo Márcion, eram interpolações posteriores de judaizantes que tentavam corromper a mensagem original.

A Influência de Márcion

Márcion e suas ideias tiveram um impacto significativo no cristianismo primitivo. Ele formou sua própria igreja com seus próprios bispos, o que contribuiu para a longevidade de seus ensinamentos. A atratividade de seus ensinamentos, considerados simples e lógicos, representava uma ameaça para o cristianismo ortodoxo.

A Resposta da Igreja ao Movimento Marcionita

A resposta da Igreja ao desafio de Márcion e de outros grupos heréticos, como os gnósticos, moldou o desenvolvimento do cristianismo primitivo.

Formação do Cânone do Novo Testamento: Antes de Márcion, não havia uma lista definida de livros considerados Escrituras Cristãs. A Igreja utilizava principalmente os livros sagrados judaicos, a Septuaginta, complementando-os com leituras dos Evangelhos e cartas dos apóstolos, especialmente de Paulo. Diante do desafio de Márcion, que propôs seu próprio cânone limitado, a Igreja gradualmente estabeleceu um consenso sobre quais livros deveriam ser considerados Escrituras. Este processo não foi formalizado por um concílio, mas emergiu organicamente dentro da comunidade cristã.

Afirmação da Autoridade da Igreja: O desafio de Márcion e dos gnósticos, que afirmavam possuir ensinamentos secretos transmitidos por figuras como Paulo ou outros apóstolos, forçou a Igreja a enfatizar sua própria autoridade na interpretação da fé. O argumento da sucessão apostólica ganhou proeminência, argumentando que os líderes da Igreja eram os verdadeiros herdeiros dos ensinamentos dos apóstolos.

Desenvolvimento do Credo: Em resposta à proliferação de doutrinas divergentes, a Igreja formulou o que hoje conhecemos como o Credo dos Apóstolos. Esta declaração concisa da fé serviu como um meio de distinguir os cristãos ortodoxos daqueles que aderiam a crenças heréticas. As perguntas feitas aos candidatos ao batismo refletiam os elementos centrais deste credo emergente.

Debates Atuais

Estudiosos modernos como Judith Lieu e Sebastian Moll oferecem perspectivas contrastantes sobre Márcion e sua influência.

Judith Lieu: Em seu livro Marcion and the Making of a Heretic, Lieu argumenta que Marcion era um entre vários filósofos cristãos do século II que tentavam conciliar suas ideias filosóficas com as Escrituras. Ela argumenta que é anacrônico considerar Márcion como o criador do conceito de “Novo Testamento” e que a formação do cânone não foi uma reação direta a ele. Lieu sugere que Marcion não era uma figura eclesiástica, mas sim um líder de uma escola de pensamento.

Sebastian Moll: Em contraste, Moll, em seu livro O Arqui-Herético Marcion, argumenta que Marcion era um biblista que interpretava o Novo Testamento através das lentes do Antigo Testamento. Ele sugere que Marcion via a Igreja de sua época como corrompida por uma “conspiração judaizante” que tentava vincular Jesus ao Deus do Antigo Testamento. Moll sustenta que Marcion fundou uma igreja rival, e não uma escola filosófica, apontando para práticas como batismo e eucaristia dentro da comunidade Marcionita.

O Legado de Márcion

Apesar de rejeitado pela Igreja, o legado de Márcion continuou a influenciar o discurso teológico. O debate com Márcion e outros grupos heréticos moldou a identidade cristã no segundo século, impactando a estrutura e a compreensão da fé. Seus ensinamentos, embora heréticos, catalisaram a definição das crenças e práticas da Igreja, deixando uma marca duradoura na história cristã. 

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