“Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vocês o Reino.” (Lc 12:32)
Introdução
O medo é uma coisa séria. Ele é tão antigo como Adão e Eva e tão íntimo como o nosso próprio coração. Ele não grita apenas em situações-limite; muitas vezes sussurra como ruído de fundo diante das nossas contas, diagnósticos, reputação e futuro. Em Lucas 12, Jesus dirige-se a um grupo de pessoas pressionadas pelo medo por fora e por dentro. Ele desmonta as falsas seguranças (como a do rico insensato), corrige a ansiedade (falando sobre corvos e lírios), realinha o temor (não temer homens) e, então, finca um fundamento: “não tenham medo” — e dá a razão: o Pai se agrada em dar o Reino.
Hoje, convido você a (1) entender o medo que Jesus está tratando, (2) ouvir o chamado “pequeno rebanho” e (3) crer no coração do Pai para viver a realidade do Reino.
As Três Afirmações de Lc 12:32
- “Pequeno rebanho” Jesus reconhece a nossa vulnerabilidade sem nos desqualificar. “Rebanho” é linguagem de pastor: presença, guia, provisão, resgate. No rebanho, ninguém é “mais um”; o Pastor conhece e busca (Jo 10). Assumir-se “pequeno” não é abraçar a insignificância; é aceitar o cuidado.
- “Foi do agrado do Pai” A palavra carrega a ideia de deleite, não de uma concessão relutante. Deus não nos dá por pena; Ele alegra-se em dar. O fundamento para o “não temam” não está na nossa competência, mas no caráter de Deus. É o oposto do deus impessoal que precisa ser aplacado: é um Pai que toma a iniciativa.
- “Dar a vocês o Reino” O Reino não é só um destino pós-morte; é o governo de Deus invadindo o presente. “Dar” indica dom e herança, não salário. O que define os herdeiros é a justiça, a paz e a alegria no Espírito Santo (Rm 14:17). Quem vive como herdeiro vê a ansiedade perder o lastro e as mãos abrirem-se para a generosidade (a sequência natural em Lc 12:33).
O que é o medo que Jesus está tratando?
Medo não é um defeito, é um alarme. Deus deu-nos um sistema que dispara diante de um risco real — acelera o coração, prepara os músculos, foca a atenção. Até aqui, tudo normal. O problema surge quando esse alarme passa a narrar tudo: ele dispara sem perigo real, ganha a voz principal dentro de nós e reescreve o mundo em tons de ameaça constante. A Escritura chama a isto de preocupação, ansiedade, pavor.
Jesus não patologiza a humanidade; Ele reordena o coração. Em Lc 12:4-5, distingue o medo que escraviza do temor do Senhor (reverência amorosa que liberta): “não temam os que matam o corpo… temam Aquele…”. E imediatamente, em Lc 12:6-7, amacia a alma: “vocês valem mais do que muitos pardais”. A única realidade diante da qual todo o medo deve curvar-se é o próprio Deus — e este Deus é Pai. Essa é a chave que desativa a tirania do medo sem negar a realidade.
Nota pastoral: a Bíblia reconhece a dimensão espiritual, moral e relacional do medo. Há espaço para lamentar (Sl 13), pedir (Fp 4:6-7) e lançar o peso (1Pe 5:7). Jesus não nos convida a fingir calma, mas a transferir o governo.
Por que sentimos medo?
- Passado — memórias que mantêm o alarme ligado Experiências traumáticas, perdas repentinas, rejeições, violências, privações financeiras e até humilhações públicas marcam a memória. A lembrança de “quando faltou” ou “quando doeu” cria um vigilante interior sempre à procura de sinais de repetição. A culpa por pecados antigos também produz medo: medo de punição, de exposição, de “não ser mais aceite”. A Bíblia aborda isto frontalmente: “Vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos” (Romanos 8:15). O Evangelho não apaga a história, mas cura a sua interpretação: em Cristo, o passado é perdoado, a vergonha é coberta e a ferida vira cicatriz, não uma ferida aberta.
- Presente — pressões reais e a tentação do controlo São os medos do dia a dia: contas, desemprego, diagnósticos, violência urbana, conflitos familiares, reputação. É precisamente aqui que o contexto de Lucas 12 se torna precioso. Pouco antes do nosso versículo, Jesus fala sobre comida e roupa, aves e lírios, e conclui: “Busquem, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus, e essas coisas lhes serão acrescentadas” (Lc 12:22-31). O raciocínio é nítido: o Pai conhece as necessidades, vê a realidade material e chama os seus filhos a realocar a confiança — do “controlo” para a paternidade de Deus. Por isso, o “não temam, pequeno rebanho” é um remédio direto para as preocupações presentes que corroem a alegria. A ansiedade nasce quando tentamos governar o que não nos pertence.
- Futuro — a imaginação do pior Chamamos a isto de ansiedade antecipatória: “E se eu fracassar? E se eu ficar sozinho? E se a doença voltar? E se a perseguição crescer?”. A mente projeta roteiros sombrios e cobra do coração certezas que ele não pode produzir. Novamente, Jesus responde com identidade e herança: “Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado do Pai dar a vocês o Reino” (Lc 12:32). Note a decisão expressa no verbo: “foi do agrado… dar”. A decisão já foi tomada. O Reino já foi dado como alicerce, ainda que a sua consumação plena esteja por vir. O futuro não é uma sala escura sem dono; o nosso futuro tem um Proprietário e uma Promessa.
Seis Faces do Medo à Luz de Lc 12
Nesta passagem, podemos identificar pelo menos seis faces do medo. Falar sobre elas ajuda o rebanho a reconhecer o inimigo:
- Medo da falta — Nasce de histórias de escassez e do imaginário do “nunca vai dar”. Jesus confronta isto com a providência de Deus ao dizer: considerem os corvos e os lírios; busquem o Reino; o Pai sabe (Lc 12:22-31).
- Medo da rejeição — O temor de ser descartado por pessoas e, em segredo, por Deus. A resposta é a filiação: “vocês valem mais do que muitos pardais… até os cabelos… estão todos contados” (Lc 12:6-7).
- Medo do sofrimento e da morte — O pavor que dá a última palavra ao homem ou ao túmulo. Jesus recalibra o foco: não temer os homens; temer a Deus (Lc 12:4-5). E o Novo Testamento lembra: Cristo destruiu “o poder da morte” e libertou “os que… estavam escravizados pelo medo da morte” (Hb 2:14-15).
- Medo do fracasso e da insuficiência — Aquele que se compara, tenta corresponder às expectativas e sente-se sempre aquém. Jesus chama-nos de “pequeno rebanho” — identidade antes de desempenho (Lc 12:32). Ele não recruta exércitos impecáveis; pastoreia os vulneráveis.
- Medo moral (culpa e condenação) — Quando a consciência espera o castigo. O perfeito amor expulsa o medo, porque a penalidade já foi tratada na cruz (1Jo 4:18). Culpa confessada não governa o amanhã.
- Medo espiritual (engano, queda, desistência) — O pânico de não perseverar. Jesus promete o Espírito como Consolador e Guia; a perseverança é graça sustentadora (Jo 14:16-17).
Perceba como o ensino do capítulo 12 de Lucas costura estes medos. O “não temam” do versículo 32 não é confissão positiva, um “pense positivo”, mas sim teologia da paternidade de Deus aplicada ao quotidiano.
Como o Medo se Instala — e Como o Evangelho o Desloca
O medo costuma firmar-se quando três peças se encaixam:
- Narrativa: “Estou por minha conta; se eu não controlar tudo, tudo desaba.”
- Gatilho: Uma notícia ruim, uma conta inesperada, uma memória dolorosa, um comentário nas redes…
- Voto do coração: “Nunca mais vou passar por isto; então eu…”, e o “então” vira controlo (aperto), fuga (entorpecimento) ou dureza (isolamento).
O Evangelho reencaixa as peças:
- Verdade que quebra a narrativa: “Vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas o Espírito que os adota como filhos” (Rm 8:15). Não estou por minha conta; tenho Pai.
- Reinterpretação do gatilho: “Considerem os corvos… considerem os lírios” (Lc 12:24,27). Diante de cada gatilho, um sinal de providência; diante de cada ruído, um salmo.
- Novo voto do coração: “Busquem o Reino… não tenham medo” (Lc 12:31-32). Em vez de prometer autocontrolo absoluto, um ato de fé obediente: entregar, pedir, dar o próximo passo.
Do Texto à Vida: Implicações do Reino para Hoje
- Identidade: Você não é definido pelo medo que sente, mas pelo nome pelo qual é chamado. “Pequeno rebanho” é afeto, não um rótulo de incompetência.
- Segurança: A base não é o tamanho do celeiro (Lc 12:13-21), mas o prazer do Pai. Recursos são instrumentos, não salvadores.
- Posses: Quem recebeu o Reino não precisa hipotecar a alma à ansiedade financeira. A generosidade de Lc 12:33 não é ascetismo; é liberdade.
- Vigilância: A ansiedade olha para o futuro com medo; o discípulo olha com prontidão amorosa (Lc 12:35-48). Vigilância não é paranoia; é esperança ativa.
- Testemunho: Viver sem medo não é bravata; é serenidade relacional. Numa cultura saturada de pânico, a mansidão confiante é uma contracultura que evangeliza.
Conclusão
Não romantizamos o medo; nomeamos e colocamo-lo no seu devido lugar. Jesus faz isto olhando nos olhos de um povo pressionado e dizendo: não tenham medo. A sua solução é um tripé poderoso que derruba o trono do medo sem negar a sua existência: a honestidade sobre a nossa fragilidade como “pequeno rebanho”, o descanso na teologia do deleite de um “Pai a quem agrada” dar, e a liberdade de viver generosamente, pois Ele “dá o Reino”. Este tripé segue latindo, mas não dirige mais o carro.
Olhe para a cruz e para o túmulo vazio. Lá, o Pai mostrou o custo do seu prazer: não poupou o Filho para nos fazer herdeiros. Se Ele nos deu o maior, não faltará o menor (Rm 8:32). O amanhã continua incerto para nós, mas jamais para Ele.
Então, descanse. Não porque você ficou grande, mas porque o Pastor é bom. Não porque o mundo ficou menos hostil, mas porque o Pai é favorável. Não porque você controla o futuro, mas porque o Reino já lhe foi dado.
Oração Final
Pai, reordena o nosso coração pelo teu prazer. Substitui as nossas narrativas de escassez pela memória da cruz; transforma os nossos gatilhos em convites à oração; converte os nossos votos de autossalvação em passos de obediência. Ensina-nos a viver como herdeiros — com justiça, paz e alegria no Espírito. Em nome de Jesus. Amém.
Guia Prático: Do Medo à Fé
Importante: o que se segue não é “confissão positiva”, mas a prática bíblica de recordar o que dá esperança (Lm 3:21). É um roteiro para realinhar o coração ao Evangelho.
1. Troca Espiritual — Preocupação → Petição com Gratidão (Fp 4:6-7)
- Boleto e salário atrasado.
- Preocupação: “Não vai fechar.” → Petição com gratidão: “Pai, apresento-te este valor e o meu orçamento. Obrigado pelo que já providenciaste. Mostra-me o próximo passo e guarda o meu coração.”
- Exame médico marcado.
- Preocupação: “E se o resultado for ruim?” → Petição com gratidão: “Senhor, obrigado pelos médicos. Dirige o resultado, dá-me paz e lucidez.”
- Apresentação no trabalho.
- Preocupação: “Vou travar.” → Petição com gratidão: “Espírito, dá-me clareza e favor. Obrigado pelos talentos que me deste.”
2. Entrega Diária — “Lancem sobre Ele…” (1Pe 5:7)
- Ao acordar: “Senhor, entrego-te a minha agenda, os meus temores e as minhas expectativas.”
- Antes de abrir o e-mail: “Recebo só o que é meu hoje; o resto fica nas tuas mãos.”
- À noite, antes de dormir: “O que eu não resolvi hoje, eu te entrego.”
- Regra de ouro: Se o pensamento voltar ao mesmo assunto sem ação possível, é sinal de que saiu da petição e voltou à ruminação. Entregue de novo.
3. Senso de Presença — “Não temas, porque eu sou contigo” (Is 41:10)
- Porta do consultório: Confissão curta: “Tu estás comigo aqui.”
- Reunião tensa: Confissão: “Não vou sozinho.”
- Madrugada de insónia: Confissão: “Enquanto eu durmo, Tu velas.”
4. Mente Sã — Poder, Amor e Equilíbrio (2Tm 1:7)
- Catastrofização no trânsito.
- Pensamento: “Se eu me atrasar, serei demitido.”
- Reestrutura: Fato: “Estou 10 min atrasado.” / Medo: “Vão julgar-me.” / Fé: “Posso avisar e manter a excelência.”
- Comparação nas redes sociais.
- Pensamento: “Sou um fracasso.”
- Reestrutura: Fato: “Vi um post de conquista.” / Medo: “Nunca chegarei lá.” / Fé: “O meu chamado é para ser fiel, não famoso.”
- Ferramenta de bolso: Escreva em três colunas (Fato / Medo / Resposta de fé) e leia em voz alta. Ouvir a sua própria voz a declarar a verdade ajuda a sua alma a assimilá-la.