Policarpo não era uma figura qualquer. Ele era um dos últimos elos vivos que conectavam a igreja de sua geração diretamente aos apóstolos. A tradição, registrada por seu aluno Irineu de Lião em sua obra ‘Contra as Heresias’ (Livro III, Capítulo 3, Seção 4), afirma que Policarpo não apenas foi instruído pelos apóstolos, mas também foi nomeado bispo na Ásia pelo próprio apóstolo João. Isso lhe conferia uma autoridade e um respeito imensos. Ele não era um líder que conhecia a Cristo por meio de relatos de terceira mão; ele aprendeu aos pés de quem andou com Jesus. Como bispo de Esmirna, uma das sete igrejas da Ásia Menor a quem Jesus se dirige no livro do Apocalipse (cf. Apocalipse 2:8-11), ele pastoreou o rebanho de Deus durante um período de intensa pressão externa e desafios internos.
O Império Romano, no segundo século, não exigia necessariamente que os cristãos abandonassem a fé em Jesus, mas exigia algo que eles não podiam dar: a lealdade suprema ao Estado, personificada na adoração ao imperador. A declaração “César é Senhor” (Kyrios Kaisar) era um teste de lealdade cívica. Para os romanos, era um ato político simples, semelhante a saudar uma bandeira. Para os cristãos, era uma blasfêmia, pois sua confissão fundamental era que “Jesus é o Senhor” (cf. 1 Coríntios 12:3; Romanos 10:9). Essa recusa em confessar César como senhor era vista não como um ato de piedade, mas de traição. Era isso que alimentava as perseguições, muitas vezes impulsionadas não por um decreto imperial centralizado, mas pela fúria de multidões locais que viam os cristãos como ateus – por não adorarem os deuses pagãos – e como uma ameaça à paz e prosperidade do império.
Foi nesse cenário que uma perseguição eclodiu em Esmirna. Após vários outros cristãos terem sido martirizados de formas horríveis, a multidão, insatisfeita, começou a gritar: “Abaixo os ateus! Que Policarpo seja procurado!”. Seus amigos e sua congregação o persuadiram a se retirar para uma fazenda nos arredores da cidade. Policarpo não era um fanático em busca da morte. Ele entendia que a vida era um dom a ser preservado, se possível. No entanto, ele não tinha medo de morrer. Em seu refúgio, ele passava o tempo em oração. Relata-se em ‘O Martírio de Policarpo’ (Capítulo 5) que, dias antes de sua captura, ele teve uma visão de seu travesseiro pegando fogo e declarou calmamente aos que estavam com ele: “É preciso que eu seja queimado vivo”.
Quando as autoridades descobriram seu paradeiro, Policarpo demonstrou uma calma que confundiu seus captores. O relato histórico, conhecido como ‘O Martírio de Policarpo’, conta que ele poderia ter escapado, mas se recusou, dizendo: “Seja feita a vontade de Deus” (O Martírio de Policarpo, 7), ecoando a oração de seu Salvador no Getsêmani (cf. Lucas 22:42). Ao invés de fugir, ele desceu para encontrar os soldados, mandou que lhes servissem comida e bebida e pediu apenas uma hora para orar sem ser perturbado. Ele orou por duas horas, intercedendo por todos que conhecia e pela igreja em todo o mundo, com tanto fervor que os próprios soldados que vieram prendê-lo começaram a se arrepender de sua missão (O Martírio de Policarpo, 7-8).
Levado de volta à cidade, ele foi colocado diante do procônsul Estácio Quadrado, no estádio lotado. O procônsul, talvez por respeito à sua idade avançada, tentou persuadi-lo. “Respeite a sua idade”, disse ele. “Jure pela fortuna de César. Arrependa-se e diga: ‘Abaixo os ateus!'” (O Martírio de Policarpo, 9). Policarpo, com o olhar sério, olhou para a multidão pagã no estádio, gesticulou em direção a eles e, olhando para o céu, disse: “Abaixo os ateus!”.
O procônsul insistiu, tentando encontrar uma saída. “Jure, e eu o libertarei. Amaldiçoe a Cristo”. A resposta de Policarpo ecoa através dos séculos como uma das mais puras confissões de fidelidade já registradas: “Por oitenta e seis anos eu o servi, e ele não me fez mal algum. Como posso blasfemar contra meu Rei e Salvador?” (O Martírio de Policarpo, 9).
A paciência do oficial romano se esgotou. Ele ameaçou: “Tenho feras selvagens. Vou jogá-lo a elas, a menos que você se arrependa”. Policarpo respondeu: “Mande chamá-las. Para nós, é impossível mudar de ideia do que é melhor para o que é pior; mas é nobre mudar do que é mau para o que é justo”. O procônsul, frustrado, ameaçou novamente: “Se você despreza as feras, farei com que seja consumido pelo fogo”. Policarpo, firme, declarou: “Você me ameaça com o fogo que queima por uma hora e depois se apaga, mas não conhece o fogo do juízo vindouro e do castigo eterno, reservado para os ímpios. Por que você se demora? Traga o que quiser” (O Martírio de Policarpo, 11).
Sua coragem e a serenidade em seu rosto deixaram o procônsul perplexo. Ele enviou seu arauto ao meio do estádio para proclamar três vezes: “Policarpo confessou que é cristão”. A proclamação selou seu destino. A multidão, composta por pagãos e judeus, clamou por sua morte no fogo. Eles rapidamente juntaram lenha e gravetos. Quando estavam prestes a pregá-lo na estaca, Policarpo os deteve com uma última afirmação de sua confiança em Deus: “Deixem-me como estou. Aquele que me dá forças para suportar o fogo também me capacitará a permanecer firme na pira, sem a segurança dos seus pregos” (O Martírio de Policarpo, 13).
Suas mãos foram amarradas para trás, e ele ficou em pé na pira, não como um criminoso, mas como um sacrifício aceitável, um carneiro pronto para a oferta. Antes que a tocha fosse acesa, ele fez sua oração final, cujo conteúdo é detalhadamente registrado no relato do seu martírio (Capítulo 14). Não foi uma oração por livramento, mas uma oração de louvor e gratidão. Ele abençoou a Deus por tê-lo considerado digno daquele dia e daquela hora, de participar do cálice de Cristo e de ter um lugar entre os mártires. Ele louvou ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
Quando a oração terminou, o fogo foi aceso. O relato testemunhal descreve um acontecimento notável. As chamas formaram uma espécie de arco ou câmara ao redor do corpo de Policarpo, sem tocá-lo, como uma vela de navio cheia de vento. Seu corpo no meio parecia não como carne queimando, mas como pão assando ou ouro sendo purificado na fornalha. Um perfume agradável, como de incenso, encheu o ar (O Martírio de Policarpo, 15). Vendo que o fogo não o consumia, um executor recebeu a ordem de apunhalá-lo com uma adaga. Quando o fez, a quantidade de sangue que jorrou foi tão grande que apagou o fogo, para espanto de todos os presentes (O Martírio de Policarpo, 16).
A morte de Policarpo não encerrou o drama. Os cristãos desejavam recuperar o corpo de seu amado bispo para dar-lhe um sepultamento digno. No entanto, os inimigos da fé instigaram o procônsul a não entregar o corpo, argumentando que os cristãos poderiam “abandonar o Crucificado e começar a adorar este homem”. Essa acusação revela uma incompreensão fundamental da fé cristã, mas a resposta dos autores da carta é teologicamente precisa: “Eles não sabem que nunca poderemos abandonar a Cristo, que sofreu pela salvação de todo o mundo… nem adorar a qualquer outro. Pois a Ele nós adoramos como o Filho de Deus, mas aos mártires nós amamos como discípulos e imitadores do Senhor” (O Martírio de Policarpo, 17).
No fim, o corpo foi cremado pelas autoridades. Os cristãos, mais tarde, recolheram seus ossos, “mais preciosos do que joias e mais finos do que ouro” (O Martírio de Policarpo, 18), e os depositaram em um lugar apropriado. Eles se reuniam anualmente naquele local não para adorar um mártir, mas para celebrar o “aniversário” de seu martírio, para lembrar seu testemunho e para preparar outros para enfrentar o mesmo tipo de prova.
Então, qual é o propósito de recontar essa história? Não é para nos sentirmos culpados por nossa fé confortável. Também não é para cairmos em um moralismo simplista de “seja corajoso como Policarpo”. A história de Policarpo não é, em última análise, sobre a força de Policarpo. É sobre a fidelidade de Cristo. A resposta “oitenta e seis anos eu o servi, e ele não me fez mal algum” é a chave. A coragem de Policarpo não nasceu de uma força de vontade sobre-humana, mas de quase um século de experiência da bondade e da sustentação de Jesus. A graça que o salvou foi a mesma graça que o sustentou, e foi essa mesma graça que o capacitou a enfrentar as chamas.
Sua história aponta diretamente para Cristo. Seu martírio foi um martys, uma testemunha. Sua morte foi uma imitação do sacrifício de Cristo, mas nunca uma substituição. Ele não morreu para expiar pecados; ele morreu porque já havia sido redimido pelo único sacrifício capaz de expiar pecados, o de Jesus na cruz. Sua confiança não estava em seus próprios méritos, mas na promessa da ressurreição e na fidelidade de seu Rei.
Para nós, hoje, o fogo pode não ser literal. Mas os “Césares” de nossa cultura exigem nossa lealdade todos os dias. O materialismo exige que curvemos nosso coração ao deus do consumo. A ideologia do politicamente correto exige que confessemos suas verdades em vez da verdade do Evangelho. O relativismo exige que rebaixemos Jesus a apenas “uma” verdade entre muitas. A pressão para se conformar é uma forma de dizer “César é Senhor”.
O testemunho de Policarpo nos chama de volta à simplicidade radical da primeira confissão cristã: “Jesus é o Senhor”. Essa é a declaração que separa a igreja do mundo. É a verdade pela qual vivemos e, se necessário, pela qual morremos. A lição final é que uma vida inteira de serviço fiel a Cristo é a melhor preparação para uma morte fiel. A mesma graça que nos justifica é a que nos santifica e nos glorifica. Policarpo recebeu a coroa do vencedor não porque era forte, mas porque seu Rei era fiel. E esse mesmo Rei promete a cada um de nós, nas palavras que foram dirigidas diretamente à igreja de Policarpo em Esmirna: “Não temas as coisas que hás de padecer… Sê fiel até a morte, e dar-te-ei a coroa da vida” (Apocalipse 2:10).