O Espírito do Senhor se retirou de Saul, e um espírito maligno, vindo da parte do Senhor, o atormentava. 1 Samuel 16:14
A história que vamos explorar hoje é sobre um rei que tinha tudo, mas perdeu a paz, e sobre como o alívio chegou a ele de uma forma e de um lugar que ninguém, muito menos ele, poderia esperar.
Estamos no livro de Primeiro Samuel. O rei Saul, o primeiro monarca de Israel, está no trono. Ele é alto, imponente, um guerreiro. Mas algo está profundamente errado. O texto bíblico, em Primeiro Samuel, capítulo dezesseis, versículo quatorze, nos dá o diagnóstico de uma forma direta: “O Espírito do Senhor se retirou de Saul, e um espírito maligno, vindo da parte do Senhor, o atormentava.”
Vamos parar aqui por um instante, porque esta frase é uma das mais complexas e, talvez, perturbadoras de todo o Antigo Testamento. Como pode um espírito “maligno” vir “da parte do Senhor”? Isso não parece uma contradição? Para a nossa mente moderna, que tende a separar Deus de tudo o que é negativo, a ideia soa estranha. Mas para o antigo hebreu, a soberania de Deus era absoluta e total. Nada acontecia fora do Seu controle ou da Sua permissão. A luz e as trevas, a paz e a calamidade, tudo estava sob o Seu domínio, como lemos no livro de Isaías, capítulo quarenta e cinco, versículo sete.
Isso não significa que Deus seja o autor do mal. A questão é mais sutil. Saul, por seus atos de desobediência e rebelião, havia rompido sua conexão com Deus. Ele rejeitou a Palavra do Senhor, e como consequência, o Espírito do Senhor, que lhe dava sabedoria, paz e direção, se retirou. O que restou foi um vácuo. E nesse vácuo, uma outra presença se instalou. O termo hebraico para “maligno”, ra’ah, pode ser traduzido como “prejudicial”, “aflitivo” ou “calamitoso”. Era um espírito de angústia, de depressão profunda, de paranoia. Era a consequência direta e espiritual da ausência de Deus. Deus não enviou ativamente um demônio para possuir Saul, mas, em Sua soberania, permitiu que a ausência de Sua presença protetora resultasse nesse tormento. Saul estava colhendo os frutos amargos de suas próprias escolhas. Ele tinha a coroa, o palácio, o exército, mas por dentro, era um homem assombrado.
Seus servos, as pessoas mais próximas a ele, percebem a sua agonia. Eles veem o rei mergulhado em trevas, paralisado pelo medo, incapaz de governar. E eles propõem uma solução, uma terapia da época. Em Primeiro Samuel, capítulo dezesseis, versículos quinze a dezessete, eles dizem: “Vês que um espírito maligno da parte de Deus te atormenta. Que nosso senhor ordene a teus servos que estão aqui que procurem um homem que saiba tocar harpa. E acontecerá que, quando o espírito maligno da parte de Deus vier sobre ti, ele tocará com a sua mão, e te sentirás melhor.”
A sugestão deles é pragmática e, de certa forma, sábia. Eles entendem o poder terapêutico da música. A música tem a capacidade de acalmar a mente, de ordenar os pensamentos e de elevar o espírito. Martinho Lutero, uma figura central para a Igreja Protestante, diria séculos mais tarde que “ao lado da Palavra de Deus, a música merece o maior louvor”. A música era, e é, um presente de Deus para a humanidade. Saul, desesperado por qualquer alívio, concorda imediatamente: “Encontrem-me alguém que toque bem e tragam-no a mim.”
A busca por alívio começa. E aqui, a narrativa muda de cenário. Deixamos a corte sombria e opressiva de Saul e vamos para os campos ensolarados de Belém. Lá, longe de toda a intriga palaciana, um jovem pastor cuida das ovelhas de seu pai. Seu nome é Davi. Este é o mesmo Davi que, pouco tempo antes, havia sido ungido secretamente pelo profeta Samuel como o futuro rei de Israel. Mas depois da unção, nada de espetacular aconteceu. Não houve uma marcha para o palácio ou uma aclamação pública. Davi simplesmente voltou para o seu trabalho. Voltou a cuidar das ovelhas.
E é neste período de aparente anonimato que Davi estava sendo preparado. Sua vida não estava em pausa; estava em formação. Longe dos olhos do mundo, ele desenvolvia seus talentos. Ele praticava sua harpa, não para uma audiência real, mas para Deus e para as ovelhas, sob o céu estrelado. Ele fortalecia sua coragem, não em campos de batalha, mas defendendo seu rebanho de leões e ursos. Ele aprofundava sua fé, não em debates teológicos na corte, mas em comunhão silenciosa com o Criador na solidão dos pastos. Ele estava se tornando um homem segundo o coração de Deus, enquanto o homem segundo a escolha do povo, Saul, se desintegrava.
A providência divina, então, conecta esses dois mundos. Um dos servos de Saul, ao ouvir o pedido do rei, se manifesta. Sua resposta, registrada em 1 Sm 16:18 (Primeiro Samuel, capítulo dezesseis, versículo dezoito), é um dos currículos mais impressionantes da Bíblia. Ele diz sobre Davi: “Vi um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar. Ele é um homem valente e guerreiro, fala com bom senso e tem boa aparência. E o Senhor está com ele.”
Vamos analisar essa descrição. Davi era habilidoso (“sabe tocar”). Ele era corajoso (“homem valente e guerreiro”). Ele era sábio e eloquente (“fala com bom senso”). Ele tinha uma presença marcante (“tem boa aparência”). Todas essas são qualidades admiráveis. Mas a última frase é a que define tudo, a que separa Davi de Saul e de qualquer outro candidato: “E o Senhor está com ele.”
Essa era a verdadeira qualificação de Davi. Não era apenas seu talento musical que traria alívio a Saul, mas a presença de Deus que habitava nele. Saul havia perdido essa presença; Davi a possuía abundantemente. E assim, o plano de Deus se desenrola de uma forma bela e irônica. O rei atormentado, sem saber, manda chamar o seu substituto, o futuro rei, não para prendê-lo ou para lutar com ele, mas para que ele lhe trouxesse paz. Davi não forçou a porta do palácio. Ele não precisou nem mesmo bater. Deus abriu a porta para ele através da necessidade desesperada de seu adversário.
Davi chega à corte. Ele entra no serviço de Saul. O texto nos diz que Saul gostou muito dele, a ponto de torná-lo seu escudeiro, uma posição de grande confiança. A relação inicial é positiva. Davi serve bem, com humildade e excelência, no lugar onde Deus o colocou. Ele não chega com a arrogância de quem foi ungido rei, mas com a disposição de um servo.
E então, o momento crucial chega. O versículo vinte e três descreve a cena: “Sempre que o espírito da parte de Deus vinha sobre Saul, Davi pegava sua harpa e tocava. Então Saul sentia alívio, se sentia melhor, e o espírito maligno se afastava dele.”
A música de Davi era um canal da graça de Deus. Não era um feitiço ou um amuleto mágico. Era a manifestação da presença de Deus, fluindo através de um vaso preparado, para um ambiente de tormento. A palavra hebraica para “alívio” aqui é ravach, que carrega a ideia de “espaço amplo”, de “respiro”. Quando Davi tocava, era como se as paredes da prisão mental de Saul se afastassem. Ele conseguia respirar novamente. A opressão se dissipava. A presença calmante de Deus, mediada pela música de Davi, era mais forte do que a presença aflitiva que o atormentava.
Esta dinâmica entre Saul e Davi tornou-se um pilar na história. A figura de Davi, o pastor que traz paz com sua harpa, é vista por muitos estudiosos protestantes como uma prefiguração de Cristo. Jesus, o Bom Pastor, é aquele que entra em nosso tormento, em nossa angústia existencial, e com Sua presença, traz o verdadeiro ravach, o verdadeiro alívio e espaço para a alma respirar. Saul, por outro lado, se tornou o arquétipo do líder que, confiando em sua própria força e desobedecendo a Deus, abre a porta para a desintegração espiritual e mental.
Mas a história não termina aí. Ela nos ensina um princípio fundamental sobre como lidamos com nosso próprio sofrimento e o sofrimento dos outros. Davi encontrou alívio para Saul, mas, nesse processo, ele também estava sendo posicionado e preparado por Deus. Ao servir, ele estava sendo elevado. Isso nos remete ao que lemos em Provérbios, capítulo onze, versículo vinte e cinco: “O generoso prosperará, e quem dá alívio a outros, alívio receberá.”
Muitas vezes, quando estamos em angústia, nossa tendência natural é nos fechar. Nos concentramos em nossa própria dor, em nosso próprio vazio, assim como Saul. Procuramos alívio em soluções rápidas, em distrações que apenas mascaram o problema. Mas este relato nos mostra um caminho diferente. O caminho para o nosso próprio alívio muitas vezes passa por nos tornarmos um canal de alívio para outra pessoa.
Davi não se preparou para servir ao rei pensando em si mesmo. Ele desenvolveu seus dons na obscuridade dos campos de pastoreio por fidelidade a Deus. E quando a oportunidade surgiu, ele simplesmente usou o que tinha — uma harpa e um coração alinhado com Deus — para servir a um homem em sofrimento. Ao fazer isso, ele não apenas ajudou Saul, mas também cumpriu uma etapa crucial de seu próprio destino.
Isso nos leva a uma reflexão profunda sobre nossas próprias vidas. Quais são as “harpas” que Deus nos deu? Quais são os talentos, as habilidades, as experiências — até mesmo as dolorosas — que fomos moldando ao longo de nossa caminhada? Talvez seja a habilidade de ouvir, de cozinhar uma refeição para um vizinho doente, de oferecer uma palavra de encorajamento, de usar nossa profissão para trazer ordem e beleza ao caos. Estes são os instrumentos que Deus nos deu.
A questão é: estamos usando-os? Ou estamos esperando por um grande palco, uma unção dramática, enquanto a oportunidade de trazer alívio a alguém que está ao nosso lado passa despercebida? A história de Saul e Davi nos ensina que o serviço mais profundo muitas vezes acontece nos lugares mais inesperados. A maior necessidade de Saul foi atendida não por seus generais ou conselheiros, mas por um jovem músico de uma cidade pequena.
No final, o alívio que Davi oferecia era temporário. Sempre que ele parava de tocar, o tormento de Saul podia retornar. Era um tratamento para o sintoma, não a cura para a doença, que era a rebelião do coração de Saul. O alívio definitivo, a cura completa, só se encontra na fonte de toda a paz, Jesus Cristo. Ele é a bênção final de Deus para a humanidade.
Mas, enquanto estivermos aqui, somos chamados a ser como Davi. Somos chamados a pegar as harpas que Deus nos deu e tocar. Somos chamados a entrar nos espaços atormentados da vida de outras pessoas e, através da presença de Deus em nós, sermos canais de Seu alívio, de Seu espaço, de Seu respiro. E ao fazê-lo, descobrimos uma verdade paradoxal e libertadora: aquele que se esvazia para refrescar os outros será, ele mesmo, preenchido e refrigerado. O verdadeiro alívio não é encontrado ao buscá-lo para nós mesmos, mas ao oferecê-lo aos outros, em nome daquele que é o alívio de todo o mundo.