Diversas acusações levaram à perseguição de cristãos nos primeiros séculos do Império Romano, abrangendo esferas religiosas, sociais e políticas. Estas acusações frequentemente se sobrepunham e eram moldadas pelo contexto cultural e pelas preocupações das autoridades e da população da época.
Acusações de Natureza Religiosa:
- Ateísmo: Uma das principais acusações contra os cristãos era a de serem “ateístas”. No contexto romano, isso não significava necessariamente a negação da existência de divindades, mas sim a rejeição do panteão romano e a recusa em prestar homenagem aos deuses tradicionais do Império. A religião romana era profundamente integrada à vida cívica e social, e a participação nos rituais religiosos pagãos era vista como um dever para garantir a proteção e a prosperidade do estado. Ao se recusarem a adorar os deuses romanos, os cristãos eram vistos como negligentes de seus deveres cívicos e, portanto, como “ateus” por não reconhecerem as divindades que sustentavam a ordem romana. Essa acusação também se estendia à recusa em participar do culto imperial, que envolvia a oferta de incenso ao imperador e era um elemento central para cimentar a autoridade política. Imperadores como Domiciano chegaram a exigir títulos divinos, e a recusa dos cristãos em prestar-lhes honras divinas era vista como um ato de deslealdade e ateísmo. Policarpo, ao ser pressionado a denunciar “os ateístas”, olhou para a multidão pagã e disse: “Afastai-vos dos ateístas”.
- Superstição (“Superstitio”): As autoridades romanas frequentemente viam o cristianismo não como uma religião legítima (“religio licita”), mas como uma “superstitio”, um culto estrangeiro e pernicioso. O termo latino “superstitio” tinha conotações de práticas e crenças associadas a povos estrangeiros, como os germanos ou os egípcios, e era geralmente visto com desconfiança. Tácito chamou o cristianismo de uma “superstição mortal”, e Suetônio o descreveu como uma “nova e maléfica superstição”. Essa classificação como “superstitio” implicava que o cristianismo era considerado irracional, excessivo e potencialmente prejudicial ao bem-estar público, em contraste com as tradições religiosas romanas estabelecidas. Para os romanos, a legitimidade religiosa residia nas práticas e ritos transmitidos pelas gerações, ligados a lugares e povos específicos. Como o cristianismo não possuía uma pátria de origem dentro do Império e não se baseava em uma tradição antiga reconhecida, era visto como uma inovação perigosa e uma “superstição degenerada”.
- Impiedade: Intimamente ligada à acusação de ateísmo estava a de impiedade. Para os romanos, a religião sustentava a vida do estado, e a piedade não era apenas uma questão pessoal, mas um dever cívico essencial para a manutenção da ordem e da prosperidade. Ao se recusarem a adorar os deuses romanos e participar dos ritos públicos, os cristãos eram vistos como indivíduos impiedosos que não contribuíam para o bem público e, pior, o minavam. A acusação de impiedade implicava uma rejeição das normas sociais e religiosas fundamentais do Império.
Acusações de Natureza Social:
- Canibalismo e Incesto: Rumores infundados, provavelmente originados de interpretações distorcidas das práticas cristãs da Eucaristia (comunhão, onde os cristãos comiam pão e vinho em memória do corpo e sangue de Cristo) e dos ágapes (festas de amor ou refeições comunitárias), acusavam os cristãos de canibalismo (comer carne humana) e incesto. Essas acusações sensacionalistas inflamavam a animosidade popular contra os cristãos.
- Imoralidade, Vícios Não Naturais e Magia Negra: Além das acusações específicas de canibalismo e incesto, os cristãos eram frequentemente acusados de uma gama mais ampla de comportamentos imorais, vícios “não naturais” e prática de magia negra. Essas acusações visavam manchar a reputação dos cristãos e apresentá-los como uma ameaça à moralidade pública e à ordem social.
- Ódio à Raça Humana: Tácito acusou os cristãos de “ódio à raça humana”. Essa acusação não significava necessariamente um ódio literal à humanidade, mas sim que o comportamento e as crenças dos cristãos eram vistos como estranhos e contrários às normas sociais romanas. Sua separação das práticas religiosas e sociais pagãs, sua recusa em participar de eventos públicos ligados ao culto pagão e seu foco em uma comunidade distinta eram interpretados como uma alienação e hostilidade em relação ao resto da sociedade.
Acusações de Natureza Política:
- Desafio à Autoridade Imperial: A crença central dos cristãos de que “Cristo é Senhor” (Kyrios) era vista como um desafio à autoridade do imperador. Sua lealdade primária a um poder superior ao do imperador era interpretada como uma ameaça a um sistema político que exigia lealdade absoluta ao imperador e ao estado romano. Mesmo que os cristãos afirmassem ser apolíticos, sua adesão a uma lei divina mais alta era considerada subversiva. A ascensão dos “escravos de Cristo” era vista como a queda do domínio dos Césares.
- Perturbação da Ordem Pública e Sedição: Em algumas ocasiões, os cristãos foram acusados de perturbar a paz e causar desordem pública. O próprio surgimento do cristianismo como uma seita distinta do judaísmo levou a conflitos internos entre judeus e cristãos, que por vezes foram percebidos pelas autoridades romanas como perturbações da ordem. A recusa dos cristãos em participar dos ritos religiosos pagãos também era vista como uma fonte de potencial descontentamento popular e instabilidade social. A alegação de Cipriano de que os cristãos se reuniam em uma conspiração e eram inimigos dos deuses romanos reflete como as autoridades viam suas atividades.
- Obstinação e Perversidade: Quando confrontados com a exigência de renunciar à sua fé, a firmeza e a recusa dos cristãos eram frequentemente interpretadas não como convicção religiosa, mas como teimosia irracional e “perversidade inflexível” que merecia punição, como expressou Plínio. Essa “obstinação” em face da autoridade imperial era vista como uma afronta à ordem estabelecida.
- Conspiração e Associação Ilegal: Os cristãos eram acusados de formar associações ilegais e secretas, o que era visto com suspeita pelas autoridades romanas, que temiam qualquer grupo que pudesse desafiar seu poder. As reuniões privadas dos cristãos, muitas vezes realizadas em segredo, alimentavam essas suspeitas de conspiração.
- Onda de Sentimento Anti-Cristão em Tempos de Crise: Em momentos de dificuldade para o Império, como invasões bárbaras, pestes ou desastres naturais, os cristãos frequentemente eram culpados e se tornavam bodes expiatórios. Acreditava-se que a ira dos deuses havia sido provocada pela presença e impiedade dos cristãos, levando a população a clamar por sua punição (“Cristãos aos leões!”).
- Pacifismo e Recusa do Serviço Militar: Em um império construído sobre a força militar, a recusa de alguns cristãos em servir no exército era vista como uma ameaça à defesa do Império. Embora essa não fosse uma acusação primária nos primeiros séculos, tornou-se mais relevante à medida que o número de cristãos crescia e o Império enfrentava crescentes ameaças militares.
Essas acusações, muitas vezes baseadas em mal-entendidos, preconceitos e temores, forneceram a justificativa para as perseguições esporádicas e, em alguns casos, sistemáticas que os cristãos enfrentaram nos primeiros três séculos da história da igreja. A firmeza dos mártires em face dessas acusações e da morte acabou por contribuir para o crescimento e o eventual triunfo do cristianismo no Império Romano.