Prefácio da Carta aos Romanos por Lutero
Nos anos de 1515 e 1516, Lutero lecionou em Wittenberg sobre a carta aos Romanos, esboçando definições profundas sobre conceitos fundamentais da teologia cristã, como fé, graça e justiça. Porém, foi em 1546, que Martinho Lutero escreveu o prefácio de seu comentário à Epístola aos Romanos, que está publicado nas páginas 129-141 do volume VIII das Obras Selecionadas. 📜🔍(Clique aqui para ver).
Para Lutero, Romanos era a “joia e o centro de toda a Escritura”, pois ela contém a chave para a verdadeira justiça: a fé em Jesus Cristo. Ele argumentava que a justiça de Deus não era algo alcançado por meio de boas obras, mas sim uma graça recebida pela fé.
O Impacto na vida de John Wesley
Nas páginas da história, conta-se que John Wesley, fundador do Metodismo, em 24 de maio de 1738, durante um encontro dos Irmãos Morávios em Aldersgate, Londres, foi tocado de forma indelével.
Naquela reunião, o prefácio de Lutero à Carta aos Romanos foi lido. Tais palavras de Lutero inflamaram o coração de Wesley, que descreveu o momento como um divisor de águas, onde a emoção e a clareza espiritual se fundiram em sua alma. Em seu diário, ele relata:
> “Senti meu coração estranhamente aquecido. Senti que confiava em Cristo, Cristo somente, para a salvação; e uma segurança me foi dada de que Ele havia tirado meus pecados, sim, meus pecados, e me salvado da lei do pecado e da morte.”
Wesley, até então, estava atormentado por dúvidas sobre sua fé e buscava a salvação através de suas próprias obras, mas sempre se sentia inseguro quanto à graça divina. A leitura do prefácio de Lutero revelou-lhe que a fé em Cristo era o único caminho para a verdadeira salvação. 📜✨
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Prefácio da Carta aos Romanos por Martinho Lutero
Este prefácio originalmente se encontra nas Obras Selecionadas n. 8, páginas 129-141
Esta Epístola é realmente a parte principal do Novo Testamento e o mais puro Evangelho, sendo digna não apenas que todo cristão a conheça, de coração, palavra por palavra, mas que se ocupem diariamente com ela, como o puro pão diário da alma. Seu conteúdo jamais pode ser esgotado, e quanto mais nos dedicamos ao seu estudo, mais preciosa se torna, e mais saborosa fica.
E assim, na medida em que Deus me der o seu poder para abrir caminho com este prefácio, eu farei o melhor que posso a fim de ser compreendido por todos. Pois, até então, esta Epístola tem sido maldosamente obscurecida com comentários sem utilidade, mas ela é, em si mesma, uma luz brilhante quase suficiente para iluminar toda a Escritura.
Primeiramente devemos ter conhecimento de sua linguagem e saber o que Paulo pretendia dizer com palavras como lei, pecado, graça, fé, justiça, carne, espírito e etc., pois, do contrário, a leitura não terá o menor valor.
Pelo simples termo “lei”, você não deve ter em mente aqui o seu entendimento comum, como o que deve ou não ser feito, pois este seria o padrão humano da lei, ou seja, aquilo que deve ser cumprido, mesmo que o coração não esteja envolvido no processo.
Porém Deus julga de acordo com o que está no profundo do coração, e por essa razão sua lei estabelece exigências sobre o mais íntimo do coração, as quais não podem ser satisfeitas com obras.
Por outro lado, Sua lei pune as obras que não são realizadas do mais profundo do coração, como a hipocrisia e a mentira. Em razão disso, todos os homens são chamados mentirosos (Salmo 116) pelo fato de que ninguém guarda ou não pode guardar a lei de Deus do fundo do coração, pois todos encontram em si mesmos desgosto por aquilo que é bom e prazer naquilo que é mau. Logo, se não há disposição prazerosa naquilo que é bom, então, interiormente, não há cumprimento da lei de Deus, pois ali certamente há pecado, e a ira de Deus é merecida mesmo que externamente seja apresentada uma vida honrada e com boas obras.
Desta forma, no capítulo 2, Paulo conclui que todos os judeus são pecadores, e diz que os que cumprem a lei são justos diante de Deus. Isso significa que ninguém por suas obras é um cumpridor da lei; mas contrariamente lhes diz: “Ensinas a não cometer adultério, mas tu o cometes,” e “No que julgas o outro, a ti mesmo te condenas, pois praticas as próprias coisas que condenas”; como se diz, “Externamente vives bem a lei, e julgas aqueles que não a vivem, e sabes como ensinar a cada um; tu vês o cisco no olho dos outros, mas não vês a trave no teu.”
Pois mesmo que com tuas obras cumpras a lei motivado por medo da punição ou amor à recompensa, contudo, farás tudo isso sem disposição e prazer, sem amor para com a lei, mas sim de má vontade, sob compulsão; se a lei não estivesse lá, você preferiria fazer outra coisa. A conclusão é que no fundo do seu coração odeias a lei. O que importa, então, se você ensina os outros a não roubar se você é um ladrão no coração, que gostaria de ser também um externamente caso pudesse? Embora, com certeza, a obra externa não está muito atrás de tais hipócritas! Assim ensinas os outros, mas não ensinas a ti mesmo; e tu mesmo não sabes o que ensinar, e nunca tiveste um entendimento correto da lei. Não, a lei aumenta o pecado, como diz o capítulo 5, pelo fato que quanto mais a lei exige o que o homem não pode fazer, mas eles a odeiam.
Por essa razão ele diz no capítulo 7: “A lei é espiritual.” O que é isso? Se a lei fosse para o corpo, ela poderia ser satisfeita com obras; mas desde que ela é espiritual, ninguém pode satisfazê-la dessa forma, a menos que tudo o que se faz seja feito do fundo do coração. No entanto, somente o Espírito de Deus pode dar um novo coração capaz de fazer o homem andar de conformidade com a lei, levando-o a desejá-la no seu coração, e assim levando-o a não fazer mais nada por medo ou constrangimento, e sem a devida disposição de coração. É assim que a lei é espiritual, a qual será amada e cumprida por um coração espiritual habitado pelo Espírito. Se o Espírito não está no coração, ali o pecado permanece, juntamente com a inimizade e o desprazer para com a lei; apesar de ser a lei boa, justa e santa.
Habitue-se, então, com esta linguagem e você perceberá que fazer o trabalho da lei e cumprir a lei são duas coisas muito diferentes. A obra da lei é tudo o que se faz ou que pode ser feito voluntariamente para com as próprias forças guardar a lei. Porém, uma vez que todas essas obras são realizadas sem o devido prazer ou não provém de correta compulsão para guardar a lei, todas elas são perdidas e não possuem valor. Isso é o que Paulo quer dizer no capítulo 3, quando diz: “Por obras da lei ninguém será justificado diante de Deus.” Nisso você pode ver que os argumentadores e sofistas são enganadores quando ensinam que os homens devem se preparar para a graça por meio das obras. Como pode um homem se preparar para o bem por meio das obras, se ele não faz boas obras sem desgosto e indisposição de coração? Como poderá agradar a Deus com um coração relutante e resistente?
Para cumprir a lei, no entanto, é preciso viver com prazer, amor e, sem a obrigatoriedade da lei, ser livremente piedoso. É o Espírito Santo quem põe este prazer e amor pela lei no coração, como ele diz no capítulo 5: Mas o Espírito Santo não é dado, exceto em, com e pela fé em Jesus Cristo, como ele diz na introdução; e fé não vem, senão somente pela Palavra de Deus ou pelo Evangelho que prega a Cristo como homem e Filho de Deus, que morreu e ressuscitou por nossa causa, como ele diz nos capítulos 3, 4 e 10.
Daí vem que somente a fé aplica a justiça e completa a lei; o que jamais ocorreria fora dos méritos de Cristo, os quais são trazidos pelo Espírito que faz com que o coração se alegre livremente como deseja a lei. Dessa forma, as boas obras provêm da fé. Isto é o que ele quer dizer no capítulo 3, após ter rejeitado as obras da lei, de modo que soa como se fosse abolir a lei pela fé; “Não”, ele diz, “nós estabelecemos a lei pela fé”, isto é, nós a cumprimos pela fé.
Pecado, na Escritura, não se relaciona apenas com obras externas do corpo, mas com toda a atividade interna, do íntimo do coração, que leva o homem com todas as suas forças a praticar essas obras. Assim, o breve termo “fazer” deve significar que um homem cai no pecado e anda no pecado. A princípio, isso não tem a ver apenas com obras pecaminosas externas, a menos que um homem se entregue de corpo e alma ao pecado. As Escrituras olham especialmente para o coração e tem em conta a raiz e a fonte de todo pecado que é a incredulidade no íntimo do coração. Como, portanto, somente pela fé alguém se torna justo através da obra do Espírito, o qual gera prazer para com as coisas boas e eternas, assim também a incredulidade proporciona tal pecado, que trazido à carne, produz prazer em más obras tal como aconteceu com Adão e Eva no Paraíso.
Assim Cristo chama a incredulidade de único pecado quando diz em João 16: “O Espírito repreenderá o mundo por pecar, porque eles não creem em mim.” Por esta razão, também, antes das obras boas ou más serem feitas, ou seja, dos frutos, primeiramente existe no coração a fé ou a incredulidade, que é a raiz, a seiva proveniente do chefe do poder de todos os pecados. E este é nas Escrituras conhecido como o cabeça da Serpente e o velho dragão que pela semente da mulher, Cristo, será pisado como foi prometido a Adão em Gênesis 3.
Entre graça e dom há uma diferença. Graça significa propriamente o favor de Deus ou a boa vontade de Deus para conosco, no qual Ele se dispõe a nos dar Cristo e a derramar seu Espírito Santo e seus dons sobre nós. Isto fica claro no capítulo 5 que fala da “graça e dádiva em Cristo.” Os dons e o Espírito aumentam em nós diariamente, embora ainda não sejam perfeitos, e ainda que em nós permaneça a presença do mal e do pecado que guerreia contra o Espírito, como Paulo menciona em Romanos 7 e Gálatas 5, e na disputa entre a semente da mulher e a semente da serpente conforme predito em Gênesis 3. Contudo, a graça faz muito mais a ponto de sermos achados completamente justos diante de Deus. Pois sua graça não está dividida ou fragmentada, como acontece com os dons, mas por causa de Cristo, nosso intercessor e mediador e daquelas dádivas que já foram iniciadas em nós, a graça nos toma inteiramente em seu favor.
Neste sentido, então, você pode entender porque Paulo, no capítulo 7, refere-se a si mesmo como um pecador, apesar da falta de completude dos dons e do Espírito, ele diz ainda, no capítulo 8, que nenhuma condenação há para os que estão em Cristo. Por não estar a carne definitivamente morta, nós ainda somos pecadores; porém por crermos e termos as primícias do Espírito, Deus nos é tão favorável e gracioso que não nos imputa pecado, nem nos julga por isso, mas, até a destruição final do pecado, lida conosco segundo a fé que temos em Cristo.
Fé não tem a ver com uma noção humana puramente imaginativa como alguns sustentam, pois isto não é seguido por aperfeiçoamento de vida e boas obras. E ainda que possam ouvir muitas coisas sobre a fé, contudo caem no erro quando dizem: “A fé não é suficiente, é preciso fazer obras, a fim de ser justificado e salvo”. Esta é a razão porque ao ouvirem o Evangelho criam para si mesmos uma compreensão que lhes faz dizer: “Eu creio”. Apesar de terem isso por fé verdadeira, todavia não passa de mera imaginação que jamais alcança o coração e nunca produz bem algum.
No entanto, fé é uma obra divina operada pelo Espírito em nós. Ela nos transforma e nos faz nascer de novo (João 1); ela mata o velho Adão e nos faz homens completamente diferentes de coração, no espírito, na mente e nas forças. Essa vida na fé é completa, ativa e poderosa; e por isso é impossível não estar completamente envolvido com boas obras. Ela não questiona se há boas obras para serem feitas, mas antes que se pense nisso, já as fez e está sempre a fazer. Aquele que não faz estas obras é um homem sem fé. Ele tateia e olha, porém nunca sabe o que é fé e boas obras, embora fale muito sobre isso.
Fé é uma confiança tão viva na graça de Deus que de modo certo e seguro o homem seria capaz de arriscar sua vida mil vezes nisso. Esta confiança na graça e no conhecimento de Deus gera homens felizes e confiantes no que concerne às coisas de Deus e de toda a criação; este é o trabalho do Espírito Santo através da fé. Assim um homem está pronto e feliz, não precisando ser pressionado para servir ou fazer o bem a alguém, ou para sofrer todas as coisas por amor e louvor ao Deus que tem lhe mostrado a sua graça. Assim, é impossível separar as obras da fé, tanto quanto é impossível separar o calor das chamas. Cuidado, portanto, com suas noções falsas e com os faladores inativos que se consideram sábios o suficiente para definirem o que querem em termos de fé e boas obras. Estes são os maiores tolos. Ore a Deus para produzir fé em você, pois, do contrário, sempre permanecerá sem fé em seus pensamentos e obras.
A “Justiça de Deus” ou “a justiça que provém de Deus” é dada ao pecador que pode contá-la como sua por causa de Cristo, nosso Mediador. Por meio da fé o homem se torna sem pecado, passando a ter prazer nos mandamentos de Deus; assim, ele dá a Deus a honra que lhe é devida e lhe tributa o que deve, inclusive servindo de boa vontade o seu próximo. Dessa forma, ele não deve nada a ninguém. Essa justiça, a natureza, nossa vontade e todas as nossas forças não podem produzir nada. Ninguém pode por força própria produzir fé ou arrancar a sua própria incredulidade; como, então, alguém poderia expiar um único pecado, mesmo o menor? É assim que tudo o que é feito sem fé é falso; é hipocrisia e pecado, não importando quão bom tenham sido os seus feitos (Romanos 14).
Então, você não deve achar que a carne tem a ver apenas com as coisas impuras e o espírito apenas com as coisas interiores do coração. Tanto Paulo quanto Cristo em João 3 chamam a “carne” de coisas nascidas da carne, pois referem-se ao homem como um todo com corpo e alma, mente e sentidos, pois todo o seu ser anseia pela carne. Assim vocês devem tratar como carnal quem pensa, ensina e fala sobre grandes assuntos espirituais sem possuir a graça de Deus. Sobre as obras da carne de Gálatas 5, você pode observar que Paulo chama de heresia e odeia as obras da carne; e em Romanos 8 ele diz que a lei se tornou enferma pela carne, e isto não se refere à falta de castidade, mas a todos os pecados, sobretudo a incredulidade, que é o mais espiritual de todos os vícios. Por outro lado, ele chama de espiritual alguém ocupado com os trabalhos mais externos da vida como Cristo que lavou os pés dos discípulos e Pedro que conduziu seu barco para uma pescaria. Assim, o termo “carne” pode se referir a um homem que vive e trabalha, interna ou externamente, no serviço temporal; e o termo “espírito” ao homem que, interna ou externamente, vive e trabalha a serviço do Espírito e da vida futura.
Sem a compreensão destas palavras, você não entenderá esta carta de Paulo e nenhum livro das Sagradas Escrituras. Portanto, cuidado com todos os mestres que usam estas palavras num sentido diferente, não importando se esses professores sejam até mesmo Jerônimo, Agostinho, Ambrósio, Orígenes ou quaisquer outros como ou maiores que esses. Agora já podemos abrir a Epístola.
Primeiramente, é justo que um pregador do Evangelho, por uma revelação da lei e do pecado, reprove e mostre que o pecado não é o fruto vivo do Espírito e da fé em Cristo a fim de que os homens sejam levados a conhecerem a si mesmos, percebendo as suas próprias misérias e tornando-se humildes a ponto de clamarem por socorro. Isto é o que Paulo faz! Logo no início, no Capítulo 1, ele reprova os graves pecados e a incredulidade que foram e ainda são, claramente, evidenciados como os pecados dos pagãos que vivem sem a graça de Deus.
Ele diz: “A ira de Deus é revelada do céu pelo Evangelho, sobre todos os homens por causa de suas impiedades e injustiças. Porque ainda que saibam e diariamente reconheçam que há um Deus, no entanto, a própria natureza, sem a graça de Deus, é tão má que não são capazes de lhe agradecer e nem honrá-lo. É assim que indo de mal a pior caem numa idolatria cega que os leva a cometerem os pecados mais vergonhosos, com todos os vícios, e nem mesmo se envergonham disso, mas, pelo contrário, ainda incentivam outros a fazerem coisas tão vis e repreensíveis quanto as suas.
No capítulo 2, Paulo estende esta repreensão ainda mais longe, direcionando-a para aqueles que exteriormente parecem ser justos, mas pecam em segredo. Tais eram os judeus e tais são todos os hipócritas que, sem o desejo ou amor pela lei de Deus, levam uma boa vida, mas odeiam a lei de Deus em seus corações, e ainda são propensos a julgar outras pessoas. É esta a natureza de todos os hipócritas que apesar de se julgarem puros, estão cheios de cobiça, ódio, orgulho e toda imundícia (Mateus 23). Estes são os que desprezam a bondade de Deus e pela sua dureza acumulam para si mesmos a ira. Assim, Paulo, como um fiel intérprete da lei, não permite que ninguém se considere sem pecado, mas proclama a ira de Deus sobre todos os que vivem pela sua própria natureza e vontade, fazendo-os se perceberem como pecadores. Na verdade, Paulo os reputa como endurecidos e impenitentes.
No capítulo 3, ele põe todos juntos e diz que um é como o outro. Todos são pecadores perante Deus, exceto que os judeus tiveram a Palavra de Deus. Com certeza, muitos não creram nela, mas isso não significa que a fé e a verdade de Deus perderam seu valor. Paulo ainda cita uma parte do Salmo 51 que diz que Deus permanece justo em suas palavras. Depois disso, Paulo volta novamente ao tema para provar pelas Escrituras que todos são pecadores e que por obras da lei ninguém é justificado, pois a lei foi somente dada para que o pecado pudesse ser conhecido.
Então, Paulo começa a ensinar a maneira correta pela qual os homens devem ser justificados e salvos. Ele diz que todos são pecadores e sem louvor algum da parte de Deus, mas que devem ser justificados, sem méritos, mediante a fé em Cristo, que, pelo seu sangue, comprou isso para nós, sendo oferecido como propiciação a Deus por todos os nossos pecados, provando assim que fomos ajudados somente por sua justiça, que nos concede a fé revelada no Evangelho “anteriormente testemunhado pela lei e pelos profetas”. Assim, a lei é estabelecida pela fé, embora, por isso, as obras da lei tenham caído juntamente com toda a reputação que concediam.
Após os primeiros três capítulos, no qual o pecado é revelado e o caminho da fé para a justificação é ensinado, no capítulo 4, Paulo começa a levantar algumas objeções. Primeiro, ele aponta o que todos os homens normalmente fazem quando ouvem falar de uma fé que justifica sem obras. Eles dizem: “Então os homens não fazem boas obras?” Dessa forma, ele toma o caso de Abraão e pergunta: “Então, o que alcançou Abraão com as suas boas obras? Foram todas em vão? Ele conclui que Abraão foi justificado pela fé, sem obras, e mais que isso, as próprias Escrituras, em Gênesis 15, declaram que ele foi justificado pela fé somente, mesmo antes da circuncisão. Mas se o trabalho da circuncisão em nada contribuiu para a sua justiça, embora tenha sido ordenada por Deus, sendo uma boa obra de obediência, então, certamente, nada mais poderá contribuir para a justiça. Por outro lado, se a circuncisão de Abraão foi um sinal externo pela qual ele mostrou a justiça que já era sua pela fé, então todas as boas obras são apenas sinais externos que por seus frutos mostram que o homem já foi interiormente justificado diante de Deus.
Com esta poderosa ilustração das Escrituras, Paulo estabelece a doutrina da fé que ele já havia ensinado no capítulo 3. Ele também apresenta outra testemunha, Davi, que no Salmo 32 diz que o homem é justificado sem obras, embora ele não permaneça sem obras após ter sido justificado. Assim ele dá uma ilustração mais ampla e conclui que os judeus não podem ser herdeiros de Abraão somente por questões de sangue, nem ainda por cumprirem a lei, mas, caso sejam verdadeiros herdeiros, o serão pela fé. Porque antes da lei – a de Moisés ou a da circuncisão – Abraão foi justificado pela fé e chamado o pai dos que creem; além disso, a lei opera ira em vez de graça, pois ninguém a guarda com prazer e amor, de modo que o que vem pelas obras da lei é desgraça ao invés de graça. Por isso, somente pela fé se obtém a graça prometida a Abraão, pois estes exemplos foram registrados por nossa causa a fim de que também viéssemos a crer.
No capítulo 5, Paulo trata dos frutos e das obras da fé, tais como paz, alegria, amor a Deus e a todos os homens, confiança, ousadia, coragem, esperança na tribulação e sofrimento. Porque quando há fé verdadeira todas estas coisas acompanham o crente, devido a bondade superabundante que Deus nos mostra em Cristo, de modo que ele o entregou à morte por nós antes que pudéssemos lhe pedir isso, ou melhor, quando ainda éramos seus inimigos. Assim, temos uma fé que justifica sem obras, e isso não significa que estamos isentos da prática de boas obras, mas sim que elas nos acompanharão. Destas justas obras dos santos não sabemos nada, mas, certamente, nos seguirão paz, alegria, confiança, amor, esperança, ousadia e as qualidades da verdadeira fé e obra cristã.
Depois disso, Paulo faz um agradável passeio e comenta sobre a procedência do pecado e da injustiça, da morte e da vida, fazendo uma comparação entre Adão e Cristo. Ele diz que Cristo tinha que vir como segundo Adão para nos legar sua justiça através do novo nascimento mediante a fé, tal como o primeiro Adão nos legou o pecado através do antigo nascimento carnal. Assim, ele declara, e confirma isso, que o primeiro por suas próprias obras poderia ajudar a sair do pecado apenas se impedisse o nascimento do seu próprio corpo. Isso é provado pelo fato de que a lei divina que deveria contribuir para a justiça, se alguma coisa pode, não só não ajudou como também aumentou o pecado, pois quanto mais a lei proíbe, mais nossa natureza má a odeia, e mais quer dar asas à sua própria concupiscência. Assim, a lei de Cristo faz-se ainda mais necessária e mais a graça é indispensável para ajudar a nossa natureza.
No capítulo 6, Paulo retoma o assunto da obra especial da fé, do conflito entre a carne e o espírito, visando ao completo assassinato do pecado e da luxúria que ainda permanecem mesmo depois de sermos justificados. Ele nos ensina que pela fé nós não somos tão livres do pecado que podemos viver ociosa e descuidadamente como se o pecado não residisse em nós. Há pecado, mas esse já não é mais contado para a condenação por causa da fé que está em oposição. Portanto, temos o suficiente para ao longo de nossa vida domesticarmos o corpo, aniquilarmos suas concupiscências e compelirmos os seus membros à obediência ao espírito, e não à luxúria, de forma que nossa vida se torne como a morte e ressurreição de Cristo, completando o nosso batismo que significa a morte para o pecado e a vida nova na graça até que sejamos completamente livres do pecado, e até que os nossos corpos sejam ressuscitados com Cristo e vivam eternamente.
É o que podemos fazer, diz Paulo, porque estamos na graça e não na lei. Ele mesmo explica que ficar sem a lei não é a mesma coisa que não ter lei e ser capaz de fazer aquilo que agrada; mas nós estamos debaixo da lei quando, sem a graça, nos ocupamos no trabalho da lei. Então o pecado certamente governa pela lei, pois ninguém ama a lei por natureza, o que é um grande pecado. A graça, porém, torna a lei querida para nós, e assim não há mais pecado, pois a lei passa a estar do nosso lado, e não contra nós.
Esta é a verdadeira liberdade do pecado e da lei, da qual ele escreve, até o final deste capítulo, que é apenas uma liberdade para viver e cumprir prazerosamente a lei, e não mais sendo compelido por ela. Por isso, esta liberdade é espiritual, que não abole a lei, mas cumpre o que a lei exige, ou seja, prazer e amor. Assim, a lei se aquieta e não mais pressiona com suas exigências. É como se você tivesse uma dívida para com seu credor e não pudesse pagá-la. Há duas maneiras pela qual você poderia se livrar da dívida: ou ele não tomaria nada de você e rasgasse a nota promissória; ou algum homem bom pagasse sua dívida. É esta última alternativa que Cristo nos forneceu para nos tornar livres da lei. Nossa liberdade, portanto, não é carnal, como se estivéssemos desobrigados a cumprir a lei, mas uma liberdade que realiza muitas obras de todos os tipos, mas que não é impulsionada pelas demandas e dívidas da lei.
No capítulo 7, Paulo ilustra isso com uma parábola da vida matrimonial. Quando um homem morre, sua esposa fica livre para casar novamente; o ponto não é que ela pode ou não fazer isso, mas que agora está realmente livre para isso, algo que era inconcebível enquanto vivia seu marido. Assim, nossa consciência está ligada à lei pelo velho marido, porém, pelo Espírito, ao morrer o marido, sendo liberto um do outro, nossa consciência torna-se livre. Não significa que a consciência não faz mais nada, mas que agora está realmente livre para se unir a Cristo, o segundo marido, e produzir fruto de vida.
Então Paulo traz um quadro geral sobre a natureza do pecado e da lei, mostrando como, através da lei, o pecado agora age poderosamente. O velho homem odeia a lei porque ele não pode cumprir o que ela exige, pois sua natureza é pecaminosa e por si mesmo não pode fazer nada além de pecar; por isso a lei é morte e tormento para ele. Não que a lei é má, mas sua natureza má não pode suportar o bem, e a lei exige o bem dele. Tal como uma pessoa doente não pode suportar quando lhe exigem que corra, pule e faça coisas como alguém saudável.
Por isso Paulo conclui aqui que a lei, corretamente entendida e devidamente aplicada, não faz nada mais do que lembrar-nos de nossos pecados e nos levar a morte, fazendo-nos susceptíveis a ira eterna. Tudo isso é ensinado e vivenciado pela nossa consciência, quando está realmente presa à lei. Por isso um homem deve ter algo mais do que a lei para torná-lo justo e salvá-lo. Mas os que não entendem corretamente a lei são cegos. Eles, presunçosamente, vão à frente e acham que podem satisfazer a lei com suas obras, não sabendo o que a lei exige, ou seja, um coração disposto e feliz. Por isso, eles não veem claramente a Moisés, pois há um véu colocado entre eles, que os cobre e os impede de ver Moisés.
Depois disso, Paulo mostra como ocorre a luta do espírito contra a carne no homem. Ele mesmo se coloca como um exemplo a fim de podermos compreender como funciona o trabalho da escravidão do pecado dentro de nós. Ele chama ambos, o espírito e a carne, de “leis”, pois assim como é a natureza da lei divina para conduzir os homens e fazer exigências a eles, assim também a carne conduz os homens e de seu próprio modo faz exigências a eles, enfurecendo-se contra o espírito que igualmente faz suas exigências. Este embate dura por toda a vida, embora para alguns o calor da batalha possa ser maior ou menor dependendo da força ou fraqueza da carne. No entanto, o todo do ser do homem é espírito e carne, os quais lutam com ele até torná-lo completamente espiritual.
No capítulo 8, Paulo encoraja estes lutadores, dizendo-lhes que esta carne não pode lhes trazer condenação. Ele mostra ainda como é a natureza da carne e do espírito e como o espírito procede de Cristo, o qual nos tem dado o seu Espírito Santo para nos tornar espirituais e subjugar a carne.
Ele nos assegura ainda que somos filhos de Deus, no entanto a dureza do pecado pode se enraivecer dentro de nós, sendo guiados pelo Espírito, a lhe resistimos e o matamos. No entanto, nada é tão bom para a mortificação da carne como a cruz e o sofrimento, pois ele nos conforta nesses momentos através da provisão do Espírito de amor e de toda a criação. Pois tanto os gemidos do Espírito dentro de nós quanto o anseio da criação clamam para que sejamos livrados da carne e do pecado. Assim, vemos que estes três capítulos (6 a 8) abordam o tema do trabalho da fé que tem por finalidade matar o velho Adão e subjugar a carne.
Nos capítulos 9, 10 e 11, Paulo ensina sobre a predestinação que Deus estabeleceu desde a eternidade, à qual originalmente relaciona-se com o seu livramento ou não do pecado. Dessa forma é acentuado que a capacidade de tornar-se justo está totalmente fora do alcance humano, pois procede inteiramente das mãos de Deus. E isso é o mais altamente necessário, pois somos tão fracos e incertos que, caso estivesse isso em nosso poder, certamente nenhum homem poderia ser salvo, pois, fatalmente, o diabo nos dominaria. Porém, uma vez que em Deus isso é certo, sua predestinação não pode falhar e ninguém pode lhe resistir, temos, assim, esperança contra o pecado.
E aqui temos que estabelecer um limite para os espíritos audazes e de alta escala que trazem o seu próprio pensamento para essa questão. Eles estão no topo procurando o abismo da predestinação divina e preocupam-se em vão com sua predestinação. Eles cairão ou entrarão em desespero, pois estão se arriscando demais.
Mas, você tem seguido a ordem desta epístola? Preocupe-se primeiro com Cristo e o Evangelho, pois poderá reconhecer o seu pecado e a graça de Cristo. Então, lute contra seus pecados como tem ensinado os primeiros capítulos. Assim, quando alcançar os primeiros oito capítulos e estiver sob a cruz e o sofrimento, será confortado com o aprendizado da correta doutrina da predestinação nos capítulos nono, décimo e décimo primeiro. Pois sem sofrimento, cruz e perigo de morte não é possível falar sobre predestinação sem acarretar danos e ira divina. O velho Adão deve morrer antes que possa suportar este assunto e beber o seu forte vinho. Por isso, esteja consciente de que enquanto se está no aleitamento deve ser evitado beber vinho. Há um limite, um tempo e uma idade para cada doutrina.
No capítulo 12, Paulo ensina, e faz todos os sacerdotes cristãos saberem, que a verdadeira adoração tem a ver não com a oferta de dinheiro ou gado, como nos termos da lei, mas com a oferta de seus próprios corpos como uma legítima mortificação da luxúria. Em seguida, ele passa a descrever a conduta externa dos cristãos, sob o governo espiritual, dizendo como eles devem ensinar, pregar, governar, servir, doar, sofrer, amar, viver e assistir os amigos, inimigos e todos os homens. Estas são as obras que fazem os cristãos, pois, como já foi dito, a fé não tira férias.
No capítulo 13, Paulo ensina honra e obediência aos governantes do mundo, que realizam muito, embora incapazes de fazerem seu povo justo diante de Deus. Eles foram instituídos a fim de que os bons possam se sentir em paz externa e em proteção, e que os maus não possam se sentir sem medo, ou em paz e tranquilidade ao fazerem o mal.
Portanto, o justo é honrado por isso, embora não necessite disso. No fim, ele compreende todas as coisas no amor, e está incluído no exemplo de Cristo, o qual tem feito por nós o que também devemos fazer ao seguir seus passos.
No capítulo 14, Paulo ensina que as consciências fracas devem ser poupadas e levadas suavemente na fé, por isso os cristãos não deveriam usar a sua liberdade para fazerem o mal, mas para apoiarem os fracos. E se isso não fosse feito, então a discórdia e o desprezo ao Evangelho se seguiriam, porém o mais importante é o Evangelho. Assim, é melhor fornecer as condições para que o fraco na fé cresça mais forte, do que ver a doutrina do Evangelho resultando em nada. Este é um trabalho peculiar de amor, no qual ainda hoje há uma grande necessidade, pois no que se refere a estas questões de liberdade, muitos, agindo grosseiramente, estão sacudindo consciências fracas que ainda não conhecem a verdade. No capítulo 15, ele apresenta o exemplo de Cristo para mostrar que devemos sofrer por aqueles que são fracos de outras maneiras, tais como aqueles cuja fraqueza reside em pecados públicos ou mesmo em hábitos desagradáveis. Estes homens não devem ser abandonados, mas cuidados até que atinjam uma estatura. Por isso Cristo fez tudo, e ainda faz todos os dias. Ele nos suporta constantemente apesar das muitas faltas, maus hábitos e todas as nossas imperfeições.
Finalmente, então, Paulo ora por eles, os louva e os recomenda a Deus. Ele fala de sua missão e dos desafios da pregação do Evangelho, e pede que os romanos gentilmente ajudem e ofertem aos pobres de Jerusalém. E assim, tudo, seja por palavras ou obras, deveria ser conduzido com puro amor.
O último capítulo é dedicado aos cumprimentos finais, mas junto dele há também uma importante advertência contra as doutrinas de homens, que se tornam ofensivas quando postas ao lado da doutrina do Evangelho. É como se tivesse previsto que de Roma e pelos romanos viriam os sedutores e ofensivos cânones e decretos que enredando toda a massa das leis humanas e mandamentos acabariam por afogar o mundo inteiro, anulando esta epístola e todos os santos das Escrituras, juntamente com o Espírito e a fé, não permitindo que nada permanecesse, exceto a adoração do próprio ventre, cujos agentes são por Paulo aqui repreendidos. Amém.
Assim, nesta epístola encontramos mais ricamente as coisas que um cristão deve saber, ou seja, o que é lei, Evangelho, pecado, castigo, graça, fé, justiça, Cristo, Deus, boas obras, amor, esperança, a cruz, e também como devemos nos comportar para com todos, quer justos ou pecadores, fracos ou fortes, amigos ou inimigos. Tudo isso é habilmente fundamentado pelas Sagradas Escrituras e provado pelo seu próprio exemplo e o dos profetas. Dessa forma, parece que Paulo queria incluir sinteticamente nesta epístola o Cristianismo completo e a doutrina evangélica preparando-nos uma introdução para todo o Antigo Testamento; pois, sem dúvida, aquele que tem esta epístola bem firmada no seu coração, tem com ele a luz e o poder do Antigo Testamento. Portanto, permita que cada cristão se exercite continuamente nessa epístola a fim de que Deus possa derramar a Sua graça. Amém.
MARTINHO LUTERO